-Senhor, vinde depressa! Uma nau entra no Tejo, são velas nossas!- Rodrigo de Castanheda, excitado, corria vereda abaixo, chamando El-Rei. D. Manuel visitava o convento da Penha e conversava com o superior dos Jerónimos, seis apenas ali viviam eremitas. Esmoler e caridoso, ajudava os anacoretas com dois queijos de quilo e vasilhas de azeite, nada mais aceitariam em atenção aos votos.
-Velas de Cristo? Será D. Vasco da Gama que torna? Manda um escudeiro a saber novas! -ordenou, interessado, tentando avistar ao longe a silhueta das embarcações no Tejo, ou perto de vilarejo de Cascais, um vulto efectivamente entrava lento a barra de Lisboa, a cruz vermelha sob fundo branco não deixava dúvidas, era gente do Reino.
Apressando-se, El-Rei tornou à alcáçova de Sintra, onde por esses dias veraneava, e no dia seguinte, o décimo de Julho daquele ano de 1499 lhe trouxeram à presença o capitão da misteriosa nau. Era do reino, efectivamente, e seu capitão Nicolau Coelho, que comandara a Bérrio, da frota de Vasco da Gama, e que adiantado da frota, arribava a Lisboa mais cedo. D. Manuel alegrou-se, reconheceu o homem ali presente:
-Nicolau Coelho, boas mercês te tragam de volta ao Reino. Pois voltas só? Acaso alguma desgraça tombou infausta sobre D. Vasco da Gama…?
Saudando com vénia e beijada a mão do rei, Nicolau Coelho sossegou o monarca:
-Senhor, meu coração rejubila de alegria por vos encontrar e por sem maleitas tornar a ver a barra de Lisboa. Não vos sobressalteis. Ventos de feição adiantaram-nos na rota, D. Vasco deteve-se junto às costas de Cabo Verde, mas logo regressará.
-E a viagem…-A presença solitária da Bérrio parecia prenunciar que algo funesto sucedera.
-Alegrai-vos, senhor, todos por vós se cobriram de honra, achado que foi o reino do Samorim e outros de desvairadas gentes, e a passagem do Mar Oceano depois de dois anos de moléstias e fadigas. Vosso nome é nessas águas conhecido agora como o do rei mais poderoso da Cristandade! –relatou, ufano, como quem revela um segredo. D.Manuel sorriu, um brilho saltou-lhe nos olhos, na sala os cortesãos exultavam, impaciente, queria saber tudo.
Dois anos haviam passado desde aquele já remoto 8 de Julho de 1497, quando na alcáçova do Castelo de S. Jorge se haviam visto a ultima vez, na despedida da armada. Os Gamas, D. Vasco e D. Paulo e ele, capitães da frota que secretamente almejava uma passagem em águas seguras para a tão cobiçada Índia. Calhara-lhe comandar a S. Miguel, mais conhecida por Bérrio, esse o nome do armador de Lagos a quem havia sido comprada, nela com Nicolau embarcaram trinta e cinco dos cento e setenta homens da frota, dos quais agora voltavam quarenta, doze deles na Bérrio, em Lisboa descansavam. Consigo nesse dia havia seguido Gonçalo Alvares, que estivera com Diogo Cão nos penedos de Yelala, Diogo Dias irmão de Bartolomeu, como tesoureiro e Álvaro Braga como escrivão. Pilotara, experiente, Pêro Escobar, cavalgando aguadas e monções, arneiros e enseadas, do açoitante mar à partida fazendo luso lago ao regressar.
-Mas diz-me, Nicolau Coelho, é pois certo haver caminho seguro por mar, como as novas vindas de terras de Preste João nos asseveravam?
-Há, Senhor, certas e sábias eram as novas que em boa hora Pêro da Covilhã vos trouxe. Penosa e temerária é tal empresa, contudo. Ventos de nordeste várias vezes nos atiraram para ilhéus chãos, traiçoeiras são algumas desalmadas terras de mouros. Num porto chamado Mombaça a frota de D. Vasco quase foi massacrada por desleais infiéis, aí se temeu o pior e pelo sucesso de nossas armas.
D.Manuel, entusiasmado pelo relato mandou vir vinho, ofereceu a Nicolau Coelho que recusou. Olhando o Castelo dos Mouros, cerrou os dentes, após beber de um trago:
-Ímpios! Os filhos de Mafoma saberão o que significa ser temente a Deus e quão poderoso é El-Rei de Portugal! Quando D. Vasco salvo chegar se aprontará resposta pronta à maura lança!
-Aliados se podem contar por lá também, Senhor. Numa terra a que chamam Melinde fizeram-nos a mercê dum piloto experiente, com ele, mouro também, seguros arribámos ao reino do Samorim, numa costa do Malabar. A El-Rei de Calicut apraz que haja comércio e amizade com o grande rei de Portugal, e seus portos estão abertos a suas empresas. Mas há que cuidar, pois rodeiam-no sagazes catuais e naires que intrigam contra nosso Reino por dele pouco saberem. D.Vasco da Gama melhor vos relatará as iniquidades daquela gente, e do que alguns deles porfiaram, pois parte do tempo fiquei de guarda à armada, num porto em Pandarane, Senhor!
-Honraste-vos e honraste vosso rei, Nicolau Coelho. Já providenciei alvíssaras para vós e vossa família pela boa nova que hoje alegrou meu coração, o Reino sabe recompensar os seus bravos!
-A lealdade a meu rei e minhas armas tudo ultrapassa, até por eles morrer se necessário e se for esse o desígnio de Deus! -rematou, a alegria de contar os sucessos da empresa em primeira mão redobrava à vista da bela maquia com que dois anos de trabalhos eram agora recompensados.
Vasco da Gama apenas chegou a 10 de Setembro. Em Cabo Verde fretou nova nau, em melhor estado, ainda na Terceira soçobrou doente seu irmão Paulo, que assim não voltou ao Reino, junto com os muitos que sem o saberem escreviam das mais belas páginas da História de Portugal e do agora alargado Mundo.
Passados meses, Nicolau Coelho voltou ao mar, a ele estava amarrado pelo destino, com Pedro Álvares Cabral achou as terras do pau-brasil, lobo-do-mar, no seu mar morreu. Naquele dia em Sintra, porém, o mundo de cá ficava a saber quão pequeno era o mar quando grande era a alma.