por F. Morais Gomes

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Mai 11

O Rolls-Royce parou no Rodízio, Gloria Swanson, antiga diva de Hollywood, chegava para uma temporada na casa em Portugal.Passara dos setenta, mas mantinha uma pose altiva, arrogante e desafiadora. Pacientemente, Steve, o motorista, descarregou as inúmeras malas e caixas com chapéus. O brilho e visibilidade feneciam já para a antiga vedeta, rival de Mary Pickford e Pola Negri. Brilhara como Norma Desmond no premiado Crepúsculo dos Deuses, que lhe valera um Oscar, o papel de actriz decadente para si criado por Billy Wilder encaixava agora como uma luva, premonitório e siamês.

A casa do Rodízio, ao lado da Praia Grande, era um refúgio estival, tranquilo, agora mais que nunca. O tempo das grandes produções da Paramount passara, já só esporadicamente a chamavam, e para séries de TV. Vinha a Portugal regularmente, o  pequeno chalé, suave, contrastava com a mansão de Beverly Hills, osmose de mar e serra, assentava como local de exílio à personagem solitária de rugas delatoras e cabelo tingido, exorcizando diariamente a imagem que um cruel espelho pela manhã impunha.

Portugal, nesse dealbar de 1965 era um rincão exótico, mais calmo porém que Saint -Tropez ou Acapulco.Steve passava dos sessenta, as parecenças com Eric von Stroheim, que com ela contracenara no Crepúsculo dos Deuses prolongavam fora do plateau uma cumplicidade que fazia Glória refém de Norma e Norma emulação de Glória. Um bacardi à chegada saudou a brisa vinda da Praia Grande, prestes a inaugurar as irritantes piscinas que rápido  atrairiam ruidosos campistas e crianças em colónias de férias.

Os fox terrier, saltando do Rolls, ladravam a um gato indígena  enquanto Mabel e Fiona preparavam os quartos para três semanas de descanso.Uma refeição leve, salmão com alcaparras, um Bordeaux, beaujolais, seguindo o bacardi nas  mãos trémulas, saciaram o corpo dormente  e refém de antidepressivos.

Pela casa jaziam recordações de uma vida cheia: uma foto com Mack Sennett em Los Angeles, em filmagens para a Keystone, uma carta de Chaplin marcando um casting, um vestido que usara em Don’t Change Your Husband, do tirânico Cecil B. de Mille. O vestido, numa vitrina, trouxe-lhe  à memória o dia em que quase foi devorada por um leão, para gáudio deste.Sublime, a casa de banho convidava a banhos de espuma, quem sabe se bebendo champanhe pelo sapato, mítico fetiche incensado pelo mainstream.

Na manhã seguinte, deu um passeio a pé pela Praia Grande sulcando o vasto areal, Fiona passeava os cães, enquanto Steve esperava no carro. Usou um lenço de seda verde que lhe escondia o rosto, óculos escuros garrafais, batôn rouge, vivo, queria aspirar o iodo e o sol ameno. O Fortunato, banheiro de pele tostada do sol de muitos verões, cumprimentou-a, reverente, já conhecia a madame de outras temporadas, entregava diariamente no chalé peixe fresco da Ericeira.Era americana, logo de certeza rica.Nunca vira nenhum dos seus filmes, a maior parte mudos, mas a quem perguntava falava como intimo, eram seus os robalos que a saciavam, afinal. Nada sabia dos tempos em que vaporosa conquistara a América, para inveja de Lillian Gish e Mae West, todas agora no ocaso da carreira, assassinadas pelo sonoro, aviltantemente relegadas para desinteressantes papéis de avós ou matriarcas em seriados da tarde.

Voltava pelo paredão, vendo o Hotel das Arribas quase pronto quando um jovem a abordou, Bernardo, tímido e hesitante, vizinho no Banzão.Se não era a Glória Swanson, o jardineiro era o mesmo de ambos, o velho David. Vira várias vezes o Crepúsculo dos Deuses, e exultava com o trabalho de Glória, estrela de Hollywood agora próxima, ali, palpável. Só de Lawrence Olivier estivera próximo, no Estoril, mas nem se dignara falar-lhe. Glória, inicialmente desinteressada, acabou achando graça ao jovem, de papel e caneta mendigando o sagrado autógrafo. Segurando o papel, desenhou uns riscos, um grande G de Glória, agradecido ele preparou-se para seguir na velha 4L vermelha, eufórico, ela seguiria vagarosa a pé pela marginal.Surpreendentemente, Gloria pediu-lhe boleia para o Rodízio. Bernardo ruborizou, surpreso, o seu velho carro cheio de revistas e com  um rádio a pilhas não estava à altura. Ela achou graça, porém, e  mandou Steve e Fiona seguirem atrás do súbito Rolls-Royce de lata, em que o rato virava cocheiro, como na história.

Chegados, mandou-o entrar.A situação lembrou-a de Escravizada, nos anos vinte, fazia de Tessie McGuire uma empregada de balcão em apuros no metro de Nova Iorque, namoradinha da América ainda, ingénua e promissora. Bernardo sentiu-se intruso num cenário proíbido, a seu lado, a divina Glória representava sem máscara um  derradeiro papel, o seu.

Ligando um velho gramofone, passou uma velha canção, de Irving Berlin.Acendeu a boquilha, ofereceu um martini rosso e brindou com Bernardo, em silêncio, como se fosse uma iniciação. Glória ergueu a taça, virou-se para a parede onde pontificava o seu retrato a óleo, altiva e dominadora, e recuou para a Glória que  Los Angeles anos antes aclamara em carro aberto, ex-mulher de cinco ex-maridos. Sentiu-se transportada para Gone with the Wind e fitando o frágil Bernardo, soltou mágico e diletante: -Frankly, my dear, i don’t give a damn! -bebendo o martini de um trago só.

Sete anos depois, em Lisboa, Bernardo estreava o seu primeiro filme, com um subsídio arrancado a ferros, após meio ano de rodagem intermitente à espera de verbas. Na noite da estreia, rodeado de acólitos dos Cahiers du Cinema, a fauna das premiéres, um inesperado telegrama de Los Angeles desejava boa sorte e sucesso para o seu trabalho. Em letras garrafais, podia ver-se desenhado um G.

publicado por Fernando Morais Gomes às 14:32

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