por F. Morais Gomes

28
Mai 11

Trovejava. Raul Dias e Domingos Cachado, após opíparo jantar em  S.Pedro volviam a Sintra, a beber um derradeiro copo no Café da Vila. Raul, médico no Centro de Saúde, confraternizava e falava do novo livro de Domingos sobre  a vida de William Beckford, atento aos pormenores  de época e mordaz ao mesmo tempo, depois de um dia stressante havia que relaxar. Já passada a Gandarinha, na descida para Vila, inopinado, um carro preto de vidros fumados fez sinal para encostar à berma, abruptamente travando a passagem. Para sua surpresa, dois encapuzados saindo a correr, apontaram-lhes uma pistola, mandando entrar no carro, deixando o deles na berma. Passava da meia noite, a trovoada não abrandava, deserta a estrada, ninguém presenciara a cena, um deles com um sinal ordenou que não fizessem perguntas, e colocou-lhes uma venda nos olhos, para que não percebessem onde os levavam.

Vinte minutos depois, sem grande ruído exterior e sem que os raptores abrissem a boca, chegaram a um local que se percebia ficar fora de qualquer povoação, um pinhal talvez. Entraram forçados, uma corda tolhendo os movimentos, era uma vivenda, lá dentro um dos mascarados tirou-lhes a venda, enquanto o outro arrancava no carro. Estavam numa sala, ampla, decoração antiga, as janelas estavam corridas. Num sofá de veludo, mal iluminado, jazia o corpo inerte de um indivíduo de cabelos louros e bigode ruço, aparentemente estrangeiro. Sabendo que Raul era médico, os raptores pretendiam verificar se de facto o homem estava morto, tinham-no seguido desde o restaurante. Contrariado, tomando o pulso ao estranho, confirmou, estava efectivamente morto, sem abrir o jogo o embuçado pareceu nervoso. Numa mesa, um copo vazio com uma garrafa do lado indiciava que alguém teria bebido, um cheiro a arsénico não escapou a Domingos, como historiador investigara a morte de D. João VI cuja morte teria ocorrido por excesso de consumo de tal substância.

Foram entretanto surpreendidos pela chegada de um intruso, que possuía chave, ao rodar desta na fechadura o encapuzado virou a  arma na direcção da porta. Mal tinha entrado, um ar de  pânico apossou-se dele quando contemplou a cena, inesperada, via-se pelo ar assustado .Dava pelo nome de João, de mãos no ar depois de coagido, tanto mostrava conhecer a casa e saber quem era a vítima como tudo negava de seguida, atabalhoado. Segundo ele, o falecido era um tal Mike, militar britânico de férias em Portugal de regresso de uma comissão no Iraque, para o dr. Raul aparentemente morrera vítima de uma dose excessiva de arsénico. Mas o que fazia ali, e porque morrera? Que tinha toda aquela gente a ver com o assunto?

O embuçado foi-se familiarizando com Raul, e sem revelar a identidade, explicou-lhe o porquê do interesse no caso. Era primo de uma Teresa que se envolvera com o tal Mike no Algarve um ano antes, e procurando-o a pedido desta para lhe entregar umas fotos, dera com ele morto na sala. Como primo e amigo, era um pau de cabeleira, também estivera no Algarve quando ambos se conheceram, uma amizade de infância predispunha a colaborar e ajudar a ocultar o segredo dos dois, a prima era casada e aquela relação perigosa. Ao encontrar o inglês morto apenas  lhe ocorreu o desvio do médico, conhecia-o de vista, não sendo assim talvez nunca viesse voluntariamente. Intimamente,  esperava que lhe dissesse que só estava drogado ou adormecido, ignorava o que acontecera.

No Algarve, contou, havia um grupo na Oura, alguns amigos de Mike, como Glenda e Steve, à distância acompanhavam o flirt estival entre Mike e Teresa .Ele próprio percebeu que Glenda tinha uma relação esquisita com Mike, não parecia só amizade, silenciosa observava os dois na Praia da Oura ou nos passeios em Vilamoura.

Na vivenda, açoitada pela tempestade, João mantinha-se calado e pensativo. Conhecia Teresa e esta, num momento de desespero, confessara-lhe haver morto Mike, desesperada descobrira que afinal era casado com Glenda, uma relação muito aberta, haviam inclusive participado em experiências de swing, viera à casa a seu pedido para confirmar se ele estava bem, nutria pela amiga um amor abafado, a ideia de um segredo partilhado alentava-o e dava esperanças. Juntando-se o puzzle, em silêncio,aguardava o que fazer num xadrez perigoso.

A certa altura o embuçado achou que tinha de  decidir o que fazer com o inglês, o tempo passava, começava a exalar um odor intenso. Tirando o capuz, sentindo-se seguro, João reconheceu Ricardo Duarte, primo de Teresa, vira-os uma vez juntos em Lisboa num bar.

-Mas tu és o Ricardo! –revelou, atónito. Não te lembras de mim, o amigo da Teresa?

O até ali embuçado reagiu como se tivesse tido um flash. Abrindo o jogo, João contou-lhe o que sucedera, unia-os agora o desejo comum de proteger a prima e amiga. Raul e Domingos, na continuação daquela inenarrável noite e envolvidos na história rocambolesca prometiam silêncio, cada cavadela cada minhoca, que noite aquela.

De novo o restolho de uma chave discreta rodou sobre a porta, a sala ficou em silêncio. Pálida e nervosa, João e Ricardo reconheceram Teresa, olheirenta e assustada. Deparando com o rosto lívido mas ao mesmo tempo sereno de Mike, rebentou num choro incontido. Apenas quisera adormecê-lo o suficiente para confirmar nos seus papéis o casamento com Glenda, exagerara na dose, ele tivera uma paragem cardíaca, ao vê-lo cair, instintivamente fugira. A noite prometia, Domingos Cachado esperava sobreviver para contar tão incrível história ao seu amigo Eça, que se estava a lançar como escritor policial.

Feito um  pacto de silêncio, enterraram o cadáver no quintal e queimaram os documentos na lareira, já no exterior Domingos reconheceu o local, muito perto do Telhal. Uma história como há muito se não via uniria agora para sempre aqueles estranhos, juntos num piedoso segredo. Amanhecia já quando partiram, a trovoada amainara e novo dia raiava azul, deixando para trás uma noite dos diabos.

Três meses depois Teresa partia para S.Tomé, voluntária duma ONG de ajuda no combate da malária, Ricardo e João ficaram amigos, o dr Raul voltou às consultas, jornais ingleses durante algum tempo falaram do desaparecimento dum oficial aparentemente em Portugal.  Domingos, esse, arranjara tema para mais um livro, mas à cautela, não voltou a descer por aquela estrada, sobretudo à noite.

publicado por Fernando Morais Gomes às 13:19

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