por F. Morais Gomes

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Mai 11

Eliziário nunca saíra da aldeia, dezanove anos enfiado em Vale da Coelha, pastor de cabras nas fragas do Marão, a chamada para a tropa seria a primeira ida para longe, tirando a vez da inspecção em Vila Real. Elvas, alentejano destino, para lá o mandaram, abúlico e boçal, mudança dum mundo fechado para fechado vir a ficar noutro mundo, o do quartel entre muralhas,  catorze horas de viagem desaconselhavam idas a casa, o feitio taciturno e serrano  isolavam-no na caserna aos fins de semana. Lateiro, devoto da feijoada das quartas feiras, toda a recruta fizera atabalhoada, analfabeto, avesso ao duche, mau para a pele. O alferes Sampaio bem puxara por ele, mas, bicho do mato, nada lhe arrancavam, calado, de côdea sempre num bolso, ainda usava umas ceroulas de linho que a velha mãe lhe cozera. A custo jurara bandeira, sempre só e a um canto nos tempos mortos da recruta. Camaradas da cidade bem o tentaram com uns fumos ou uns copos no bar do quartel, tirando o tinto que bebia dum só trago, limpando a boca à farda sebosa, nada o atraía, sempre a um canto limando varinhas de vime com um canivete, que depois oferecia ao furriel Torres.

Depois do juramento de bandeira, o segundo turno de 85 dispersou, uns para Lamego, outros para Évora, o mais desejado a EPAM, a “peluda” perto de casa, a verdadeira tropa macaca. Eliziário, já pronto, ficou em Elvas, o quartel tinha uns currais, nada como dar recruta às galinhas ou mudar o chiqueiro aos porcos. Quase um quilómetro longe da parada, aí foi colocado como guarda, todas as semanas só uma vez vinha à messe, abastecendo-se para uns dias, ou trazendo os ovos que zelosas poedeiras punham para gáudio da sargentada, por quem eram distribuídos, na porta de armas à sexta feira fazendo continência com uma mão e segurando o saco de ovos com a outra. Só uma vez saiu do buraco, quando o Camboias, sargento-ajudante em pré-reforma pediu ao alferes Sampaio “voluntários” de domingo para lhe adaptarem um autocarro que comprara na sucata para fazer um bar, onde já reformado venderia uns couratos e minis perto do Estádio do Elvas.

Elvas era uma guarnição de província. Sampaio, depois de “arranhar” em Mafra no famigerado “Calhau”, a vetusta Escola Prática de Infantaria (Entrada para o Inferno, como a baptizaram) acabou colocado no RI8, fortaleza raiana dentro da muralha, da parada via-se Badajoz e o tenebroso Forte de Elvas de má memória. Habituado à elite, foi com tranquilidade que se viu naquele ambiente provinciano, de oficiais “chicos” e semianalfabetos, promovidos por bravura em África, ou sargentos lateiros, com proeminentes barrigas denunciando a verdadeira “guerra” a que se dedicavam, em pantagruélicas “jornadas de luta” em Campo Maior ou no monte do sargento Alvito, aviando torresmos. Licenciado, a tropa surgira-lhe já tarde, nem pensara ir, passada que fora a guerra, e com estágio num atelier de arquitectura interrompido. Contrariado em Mafra, foi já com bonomia que encarou as férias em Elvas. Oficial de serviços, a ele cabia redigir as ordens de serviço, minutar os louvores que a corrécios soldados abririam portas na Guarda Fiscal, ou instruir processos contra os menos disciplinados, com culpa geralmente atenuada por acção sobre influência do tinto, que era efectivamente do bom. Seriam seis meses, mesmo assim muitos, mas já bons de passar.

Certa noite, sorteio de escala, calhou-lhe a braçadeira de oficial de dia, pior se fosse a um sábado, que lhe estragaria a ida a Sintra, rotineiramente provou o rancho, inspeccionou as casernas, “com tanto brilho que o chão pareça um espelho”, presidiu à formatura da manhã, ordenando os toques e as escalas de serviço. O pior eram as noites, Elvas em Agosto esturricava, só a pedra fresca dos bancos junto à messe atenuava a febre dos dias e a brisa quente das noites. Como de costume, fez a ronda pelas camaratas, patrulhou as guaritas, no comando, pacato e dolente, viu um filme espanhol com Joselito, a matar o tempo, a troca de serviço seria pelas oito. Excitado pelo calor, decidiu-se a passear um pouco, sem dar por isso viu-se junto ao curral. O cheiro a porco e umas galinhas sem sono despertaram-lhe a curiosidade, a luz  fraquejava, era um sitio onde só uma vez entrara, a caminho da carreira de tiro. Sem grande alarde espreitou, passavam das duas da manhã, pouco se veria por ali. Passada a porta, em silêncio, apenas para um relance de rotina, os olhos quase se  esbugalharam com a cena que se lhe deparou: com ar feliz e arfando, Eliziário aliviava-se sodomizando a porca grande, a qual, com ar seráfico parecia alheia, comendo maçãs podres ao mesmo tempo. Depois do espanto, um grito ao pastor, puxando as calças pareceu até admirado por tanta consideração pelo animal, era uma porca afinal, que mal teria. A novidade da coisa deixou Sampaio sem reacção, mandando-o dormir ordenou que apagasse a luz e que aquilo se não repetisse.

No dia seguinte, passada a braçadeira, a cena grotesca ainda se não apagara da memória, com ar chocado comentou com o comandante na messe:

-Nosso coronel, nem queira saber o que aconteceu ontem, lá em baixo. Imagine que dei com um dos homens, um tal Eliziário, é lá de cima, montado em cima da porca. Isto lá com as cabras na aldeia deve ser mato. O tipo deve ter um parafuso a menos…

-O quê?- o coronel Aparício, até ali em silêncio interrompeu a laranja que descascava, banzado -então e você não lhe fez logo a folha?

-Pois…- o alferes da surpresa não pensara nisso sequer- mas a bem dizer, a porca não se queixou…

Um mês depois, o Eliziário passou à disponibilidade, findo o serviço militar. Hoje, com quarenta e cinco anos, pachorrento guarda cúmplices e traquinas cabras, seu fiel e imenso harém para lá das fragas do Marão.


publicado por Fernando Morais Gomes às 06:24

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