-Não sou desertor nem refractário, sou um exilado político- declarou o russo às autoridades que o chamavam ao Governo Civil logo após a sua chegada a Lisboa. Vladimir Ilitch Lenine, com a mulher Nadia Krupskaya visitava Portugal pela primeira vez naquele Maio de 1915, depois de anos de desterro na Sibéria, para onde fora enviado pelos esbirros do czar. Morava agora em Berna, na Suíça e em Portugal procurava contactos para combater o regime de Nicolau II, apelar à unidade proletária e à revolta contra o capitalismo. No final de 1910, a instauração da República neste país permitira que organizações de trabalhadores se afirmassem, e após um período de lutas e de agitação social, sindicalistas reformistas e anarquistas haviam criado a União Operária Nacional, organização sindical em ruptura com o governo republicano, no seguimento da dura repressão que se abateu depois da recusa do governo em discutir as reivindicações operárias. A União Operária Nacional, fiel às orientações tomadas pela Internacional Socialista em Zimmerwald, posicionara-se contra a intervenção na Grande Guerra, tumultos revolucionários republicanos em Lisboa haviam provocado centenas de mortos e feridos. Apesar de o Governo ter reduzido o horário dos operários para 8 horas,ocorriam assaltos a padarias e tumultos um pouco por todo o país devido ao aumento do pão. Lenine, impedido de voltar à Rússia viajava pela Europa, este país que cinco anos antes ousara derrubar a monarquia era-lhe estranho, mas inspirador na sua luta contra os Romanov e o capitalismo mundial.
No Governo Civil, mais preocupado com os protestos do pão, o russo foi olhado com desinteresse, deixaram seguir, mais um lunático, pensou o funcionário. O contacto de Vladimir em Lisboa era Eudóxio Batalha, velho encadernador e tipógrafo e antigo companheiro de Azedo Gneco, grande figura do socialismo e já falecido. Semianalfabeto, era um autodidacta, com Lenine comunicava num francês pirrónico, lera Proudhon e Bakunine e a Comuna de Paris era o seu modelo, avesso aos republicanos burgueses que haviam substituído os monárquicos sem olhar a sério para o povo faminto. Com Gneco, iniciara-se no Centro Promotor de Melhoramentos das Classes Laboriosas e fizera parte do Grupo da Democracia Socialista, bakuninista e libertária. Lenine era um cerebral, só a organização do proletariado sob a direcção duma vanguarda levaria ao sucesso, Eudóxio escutava com interesse, mas no seu mau francês sempre dizia preferir a acção directa, com o apoio dos arsenalistas do Alfeite mais eficaz em resultados.
Eudóxio iria pelos sessenta anos, um tal Marx de que Lenine lhe falou de forma acalorada deveria ser um prussiano a quem Azedo Gneco escrevera anos antes, quando secretário da Associação Internacional de Trabalhadores. Lenine alojou-se com Nadia num hotel da Praça da Figueira, a reunião com o núcleo socialista seria em Sintra, no Centro Republicano e estariam presentes sindicalistas da União Operária Nacional e jornalistas, afectos sobretudo ao pequeno Partido Socialista Português.
Em Sintra, local que achou parecido com Salzburg, dez correligionários convocados por Eudóxio reuniram-se naquele domingo, uma camioneta recolhera-os a todos que pouco dinheiro havia para passeios, Vladimir depois de cumprimentar, em francês, explicou ao que ia:
-Tovarich, Camaradas, trago até vós uma fraterna saudação do oprimido povo da Rússia. Os trabalhadores portugueses já se libertaram do rei opressor e da oligarquia, e serão países como os nossos, de industrialização débil e fracos elos na luta internacionalista dos operários quem fará cair as forças do capital e o imperialismo mundial que lhe dá cobro. Há que unir.Os capitalistas não são capazes de sacrifícios, está-lhes no sangue explorar! Há que lutar! A morte de uma organização acontece quando os de baixo já não querem e os de cima já não podem! Operários portugueses, peço-vos juntemo-nos para a revolução mundial, organizemo-nos em comités operários, e o futuro esperançoso do socialismo recompensará a secular luta dos trabalhadores e explorados e trará o Homem Novo!
O russo falava num francês por vezes incompreensível, mas pelo tom arrebatado logo o apelo a uma meta comum galvanizou a sala, Ribeiro de Carvalho, um jornalista presente, explicava aos menos familiarizados que já há dez anos que as coisas andavam tremidas na Rússia e este Lenine era uma figura grada, o czar não gostava dele, mas era um crânio, advogado até. José Domingues, jovem anarquista levantou-se e saudou o estrangeiro:
-Em Portugal, infelizmente, o povo ainda não tomou o destino em suas mãos. E a mensagem que deixamos é só uma: a luta armada! Só a força da bomba pode liquidar os ricos que pagam jornas de miséria. Queremos que o povo pegue em armas, e como já matámos o rei, que se refastelava à conta do povo, também os que hoje em todo o lado exercem ilegitimamente o mando assim serão apeados!
Os demais aplaudiram, Lenine cerrando o punho, depois de lhe traduzirem as palavras, aprovou, rematando:
-Um dia não muito distante surgirá uma vanguarda dos povos que estabelecerá o governo mundial dos oprimidos e famélicos, camaradas! Nas fábricas de Manchester, nas estepes de Kazan ou nas oficinas de Portugal! Obrigado, camaradas! Há que vigiar e lutar e o Sol será dos operários e camponeses, soldados e marinheiros, dos deserdados será o futuro risonho! Ontem em França, amanhã em Lisboa e S.Petersburgo!
A reunião terminou com promessas de acção concertada, um jantar regado a Colares na casa dum primo de Eudóxio na Rinchoa encerrou com vivas à revolução o auspicioso encontro, até Leal da Câmara, jornalista vizinho do primo participou no encontro, desenhando Vladimir numa caricatura que este emocionado agradeceu.
Passados uns dias, Lenine voltou para a Suiça, a missão estava cumprida e a semente lançada,por cá o movimento operário, mais ou menos anarquista iria fazendo mossa, promovendo greves selvagens e ruidosos atentados bombistas.
Dois anos depois, numa noite fria, nevava copiosamente nas ruas de Zurique, um comboio especial saía da estação da cidade, atravessando a Europa a caminho de S.Petersburgo e transportando um incógnito e misterioso passageiro. Por uns anos, ventos de mudança iriam soprar a Leste, cantando irreversíveis amanhãs rumo à Grande Utopia.