Luísa preferia Cabo Verde, a proximidade e a língua empurravam-na para essa opção, Silvério porém insistia com a ida à Venezuela, as fotos do Gonçalves com as quedas de água pujantes galgando os tepuyis e a fauna exótica e fértil não deixavam dúvidas. Seria esse o destino de Verão, as roupas recentemente adquiridas no Coronel Tapioca e a nova Samsonite com rodas iriam fazer rodagem a sul das Caraíbas entre macacos e indígenas.
A viagem serviria também para sarar feridas. O stress do trabalho de Silvério na imobiliária e a mastectomia recente de Luísa traziam-lhes o casamento no fio da navalha, nada como um destino de sonho para renovar baterias e continuar a luta. Simão, já com 16 anos, iria para o Algarve com uns amigos e até agradecia que os pais bazassem, desde que lhe deixassem guito para uns dias.
No dia marcado, após sete horas de avião desembarcaram pois em Caracas, cidade poluída e tensa, bairros de lata estendendo-se entre o aeroporto e a cidade plantada num vale e muito desorganizada, sul-americana. Os venezuelanos dum modo geral tinham todos feições ameríndias, como o Chávez, narizes achatados e grandes orelhas,Luísa pasmava onde estariam escondidas as famosas louras que amiúde ganhavam concursos de Miss Universo. Três dias depois, a bordo dom DC-10 a hélice, lá partiram para o destino desejado, Canaima, o maior parque nacional da Venezuela, maior que a Bélgica e a perder de vista, depois de uma escala em Ciudad Bolivar, poeirenta cidade do interior já a caminho das florestas de Roraima. Visto do céu, o cenário era luxuriante, rios serpenteando, vegetação esmagadora, ao longe, o famoso Salto Ángel, a mais alta queda de água do mundo, acima dos mil metros, com a água generosa perdendo-se em vapor antes de chegar ao solo. Era ali o Paraíso, e com tudo incluído.
O improvisado aeroporto era uma pista de terra batida no meio da selva ladeado por umas cabanas com telhado de colmo, os próprios passageiros tinham de retirar as malas e levá-las. O cheiro intenso da vegetação e o calor pegajoso eram excitantes, a viagem prometia e Luísa por uns momentos retomava o brilho nos olhos de antes da operação. Silvério, turista encartado, correu a colocar um chapéu de palha, novel explorador de Mem-Martins, Livingstone da linha de Sintra, esperando sinuosas onças ou assustados tatus e sacando do milagroso repelente, do qual, avisado pelo Gonçalves, trouxera paletes.
Um guia nativo e bem disposto levou-os e a mais oito num jipe tipo unimog para uma cabana, num resort com umas doze casas de colmo, uma bebida à base de rum deu as boas vindas ao grupo. Água quente e electricidade só uma hora por dia, de manhã, todos os passeios de barco e excursões às cascatas a começar sempre às cinco da manhã, avisaram, ainda na recepção. A recruta ia começar.
Depois de arrumada a bagagem e equipar a preceito com colete de vários bolsos e binóculos, à Indiana Jones, Silvério sentou-se à beira-rio frente à cabana, a paisagem era deslumbrante e vasta, duma cabana vizinha chegava contagiante o som dum merengue, voltou ao bungalow onde Luísa arrumava as roupas e agarrou-a por trás, beijando-lhe o pescoço, não resistindo ao cliché de novela:
-Me Tarzan, you Jane. Vamos caçar para o nosso almoço?
Luísa sorriu, ainda um tanto fugidia soltou-lhe a mão do colo:
-Sr.Tarzan da linha de Sintra, vá mas é por a sua roupa na gaveta. E a propósito, esquecemo-nos da pasta de dentes…
-Mas quem vai precisar disso aqui, amor?. Comeremos à mão e secaremos a boca com frutos que nós mesmo colheremos. Está ali um palmito mesmo a pedi-las…
-Deixa-te de invenções, Silvério,isso deve ser venenoso, pareces um adolescente!.
Silvério estava contente, aquela viagem traria um fôlego renovado ao seu casamento, esperava ele, Luísa, antes relutante,vestia agora roupa fresca e adequada, uns novos óculos de sol da Moschino realçavam os cabelos castanhos alongados e sedosos.
Nos dias seguintes desceram o Caroni de piroga, as águas castanhas da folhagem serpenteavam e davam lastro á barcaça à aproximação das cascatas, pujantes ejaculando Natureza bruta e límpida. Uma chilena quarentona do grupo caiu mesmo à água, tenso mas resoluto,Silvério, repentino Popeye de serviço, saltou para a água e salvou a infausta turista e nesse dia à noite, herói da jornada, foi efusivamente saudado e afogado em runs com cola no arejado bar do resort. Excitados, atravessaram uma cascata atados com cordas, o silêncio à noite, só interrompido pelas térmitas na floresta ou algum turista mais adepto do rum na tranquilidade luarada dos bungalows traziam àqueles dias de paz o bálsamo para retemperadas as forças voltarem à rotina da crise, dos telejornais-choque e da empresa em dificuldades.
Na tarde do último dia prescindiram do passeio programado, à noite haveria um luau de despedida com um churrasco assado pelos nativos, e perderam-se no matagal bordejado pelos imponentes tepuyis, quadradas mesetas onde, diziam os índios, viviam deuses que quando zangados enviavam coléricas trovoadas tropicais, enfurecendo as águas e revoltando as quedas de água. Em silêncio, sentaram-se, de mão dada, Luísa, acariciou-lhe a face, já madura dos quarenta e cinco anos de vida esforçada, e enfiou-lhe a mão nos cabelos:
-Silvério…..
-Sim?....
-És um pateta….
-Eu sei, meu amor….
-Obrigado. Nunca casaria com outro pateta que não tu. Obrigado por me recordares que há mais que um caminho para a felicidade…
Silvério sorriu, interiormente satisfeito, e gracejando, beijou-a, enquanto lhe oferecia uma flor selvagem colhida à beira-rio:
-D.Luísa Marques, prepare-se, que isto não fica por aqui.Para o ano vamos à Grande Barreira de Coral!. Tenho de usar todos os chapéus de explorador que comprei no Coronel Tapioca,não temos tempo a perder!
Mais uma trovoada tropical, das que várias vezes ao dia caíam na Gran Sabana abateu-se ruidosa do lado do grande tepuyi, algum dos deuses, contente, saudava a felicidade de Silvério e Luísa. Arremessando para longe o chapéu de safari, Silvério e Luísa deixaram-se ficar, encharcados mas felizes, num prolongado beijo de despedida daquelas férias inesquecíveis mas ao reencontro duma vida que sabiam só com os dois poder ser feliz.