por F. Morais Gomes

31
Jul 11

Moço hábil de armas, filho de Estevão de Almargem, Vasco de Sintra oferecera-se para a armada de Albuquerque que partia para Socotorá a edificar fortaleza. Esperando domar o Mar Vermelho, transportando um forte de madeira para os trabalhos iniciais, Afonso de Albuquerque seguiria como capitão da costa arábica, até Moçambique sob ordens de Tristão da Cunha. Em segredo, levava carta com missão secreta do rei, substituir D. Francisco de Almeida, que terminaria como vice-rei dois anos depois. Vasco embarcava pela aventura, a Filipa, filha do alcaide de Sintra, deixava promessa de desposar quando em glória e ao lado de Albuquerque tornasse triunfal a Lisboa.

Em Abril de 1506 partiram as armadas, Afonso de Albuquerque pilotando o próprio navio, que o piloto desaparecera antes da partida. No canal de Moçambique cruzaram-se com João da Nova, vindo da Índia, aí invernava após rombo no Frol de la Mar. Resgataram-no e à nau, juntando-os à frota. Após bem sucedidos ataque a cidades da costa oriental, seguiram para Socotorá, onde havia notícia de cristãos, e a tomaram em Agosto de 1507, iniciando a construção da fortaleza. Em Socotorá os caminhos dos capitães separaram-se: Tristão da Cunha partiu para a Índia, em apoio aos portugueses de Cananor; Afonso de Albuquerque navegou com seis navios e quinhentos homens rumo à ilha de Ormuz, centro chave do comércio no oriente, no percurso, bélico, submetendo Curiate Mascate e Corfacão. Vasco de Sintra, valente, pelejava com desusada coragem na tomada de Kalhat e Soar, gloriosos,só em Setembro chegaram a Ormuz. Fruto de acordo com o rei local, de imediato Albuquerque iniciou a construção dum forte, sendo a primeira pedra colocada em Outubro. Temerários, homens de todas as condições participaram nos trabalhos, já herói de Mascate e atento a ataque inimigo, o jovem Vasco vigiava a frota, compenetrado e atento. Posta a contestação de alguns capitães, que reclamavam das duras condições, vários navios desertaram para a Índia, deixando Albuquerque furibundo. Com a frota reduzida a dois navios e sem mantimentos, o capitão-mor voltou a Socotorá, onde reencontrou a guarnição passando fome, para reabastecer o forte houve que assaltar navios mouros e a cidade de Kālhāt.

Vasco de Sintra, aventureiro, tudo ultrapassou com denodo: as monções e enjoos da Guiné, a pestilenta ameaça da morte, as saudades de Filipa, fiel amada suspirando na longínqua e verdejante Sintra. Regressaria heróico, tomadas terras da Índia, retornaria para casar. Nove meses após a partida, e chegados a Socotorá, se percebeu não ter rumo certo a viagem das seiscentas almas de alguns nobres e muitos maltrapilhos filados na ralé de Lisboa. Gonçalo Bernardes, mestre bombardeiro, foi inesperado amigo, jovem e voluntarioso, como Vasco. Do termo de Cheleiros, junto a Sintra, desde a Mina se revelara companheiro alegre, também ele deixara amada na Igreja Nova, aí assentaria no regresso da viagem.

A bordo, haviam fogões, situados no convés, um em cada lado do navio, de onde todos tinham de se servir: biscoito, enchidos, bolacha, vinho tinto, queijo, bacalhau, avelãs, nozes. Vasco, à partida sempre com apetite, no retorno a Socotorá começou a sofrer do estômago, pálido e combalido, os enjoos tornaram-se frequentes. Albuquerque torceu o nariz, mal de Angola, suspeitava, o cruel escorbuto pestilento rondava uma vítima mais. O padre Cristovão patrulhava, qual abutre, aconselhando salvífica confissão, em dias, a Índia era miragem pairando ao longe, no assento e pendurado da amurada, Vasco definhava sem forças. O amontoado de capoeiras, despensas, tonéis e canastros era pasto certo para a invasão de ratos, que, famintos,disputavam os alimentos, fenecendo a  higiene a bordo, desordenada arca de Noé de animais, barris, fardos e passageiros, ora ao frio insuportável, ora ao calor abrasador e à chuva que açoitante inundava a embarcação. As condições periclitantes, a carência de frescos, a carne e peixe putrefactos, a falta de água e abrigos, tornavam a ansiada chegada ao paraíso cruel inferno e dolorosa provação, entregues a Deus e a um destino incerto. Febril, Vasco agonizava e lembrava Filipa, embalado pela pérfida dança das ondas. “Se os doentes tivessem mais água, não morreriam  as 80 pessoas que nos morreram até agora, fora 26 que  doentes ficaram em Moçambique” anotava Albuquerque no diário de bordo.

Da armada não constava um físico, por não se quererem gastar alguns cruzados em aprestos para a saúde, João da Barra, o barbeiro, sangrando uns e outros, fazia o que podia. Com os dias, Vasco, antes só indisposto, entrou em delírio, vexado numa enxerga de palha, febril e  sem ingerir biscoito, a água antes milagrosa a tempos deixou de o saciar, a ele e mais quinze o padre Cristovão e o barbeiro davam ânimo, receosos e impotentes. Ao fim de quatro dias, as gengivas inflamaram-lhe e ficaram inchadas, apodrecendo rápido com um tremendo mau hálito, os dentes caíram todos, hemorragias nas mucosas e pele anteviam o pior, apesar dos viris dezanove anos, a morte rodopiava em torno a Vasco, qual bailado pestilento nas águas mornas do Índico, insensível às impotentes sangrias.

Nove dias de febres se passaram, já desfigurado, à vista tardia de Socotorá, Vasco de Sintra  sem melhoras fechava os olhos, por dias não almejando aquela Índia misteriosa e opulenta, prometida terra de glória, agora ingloriamente distante, o derradeiro pensamento ficara em Sintra, onde Filipa, formosa e pura, choraria viúva de furtada vida, vencida pela  cruel e misteriosa Índia, sinuosa Circe de novo Ulisses, onde para sempre as águas engoliriam o seu amado.

Aos vinte e cinco de Janeiro de 1508, à fúnebre lista de perdas que Albuquerque inscrevia no diário de bordo, acrescia aquele Vasco de Sintra, visionário jovem em busca de glória, colhido pelo escorbuto antes da acostagem à terra prometida. Envolto por Gonçalo Bernardes em tosca sarapilheira, o mar o albergaria, imenso, senhor, sob o olhar impenetrável do Albuquerque Terribil. Nesse dia e instante, do outro lado do mundo, premonitórias, as ondas da Ursa e Adraga uivaram, abafando lágrimas de  incontáveis donzelas de Portugal. O Império gemia e chorava, mas, enterrados os mortos, seguiria indomável para a glória dos vivos, durante alguns séculos ainda intrépidos sulcadores do imenso oceano, familiar via láctea do Reino de Portugal.


publicado por Fernando Morais Gomes às 23:05

30
Jul 11

"Chove na mente, é um dilúvio a alma, o fim, sempre ele espreitando, sinistra silhueta da esperança fugidia. Encafuado poeta de café, apátrida dos tempos, sombra velha dos espaços, em silêncio calcorreio o pontão sem gente, como desolada está a praia apesar de Julho, cinzenta como o espírito,  náufragos de ridículo calção circulam no SOS das miragens. Recolho ao carro, e ao cúmplice rádio de tranquilizantes melodias.

Julho. É Inverno no país das flores, de vez  foram os cravos furtados das armas, agora apontadas a subjugados prisioneiros no país que já foi do Zeca. Volta Zeca, volta de teu túmulo, adormecida guitarra talhada no ventre dum povo acusado de sonhar. O mar provoca, desafia a vencer, qual Gama, da nau catrineta, cavalgar a onda, ousando, e logo atávico o apelo a desistir, vencido de si, temeroso. Os amanhãs perdem cor, pardacentos, longe, muito longe, no chamuscado purgatório entre o pesadelo e a ilusão. No leitor do carro,, passo Kurt Weil, por onde o escape para o próximo whisky bar?…

Escrevo. Apago. Escrevo de novo. Rasgo, despótico. Que fazer? Dar o corpo à arma? Recomeçar, com novos cravos em cano velho agora, distraído apontado a nós? Brancos, desta vez querem-se brancos, alvos e puros. A Primavera fugiu… Volta, és nossa, és Sul, és Sal, estás longe de Portugal…

Pedro Toscano, és um idiota,  ululantes hordas de conformados seres patrulham a Cidade, raptada pelo tédio e pelo spleen, assustam-te, confessa. Mudaram as madrugadas, antes límpidas e ledas mas ameaçadoras agora, promessa de castigos, cruéis e castradores, estivais armagedeões relampejados. Que fazer para não mais despertar, para de vez voltar ao filme onde todos são felizes, que inveja, ah, como é puro o cheiro límpido do iodo, é avaro o Verão, mas magnânimo o iodo.

Caneta, papel, umas linhas para a imortalidade esculpidas no areal, ao lado trilhos de passos na areia molhada. Empolga, a canção do CD, a velha Alabama Song, sejam Doors ou David Bowie, é Portugal amarelo cor de scotch passando em fundo, albergue  de errantes, trôpego de futuro e sem pedras de gelo. Vamos todos para Alabama, acolhidos no whisky bar!. Cheers! lá vai a Sílvia com o caniche, a caminho do Angra, e eu sóbrio ainda.

O Chico emigrou, cansado de desesperar, emigrou não, globalizou-se, como se diz agora, o Zé Luís morre aos poucos, licenciado em currículos mas catedrático de bares. Ao Manel surpreendi ouvindo o Zeca e Doors, cinco aguardentes durou, no esconso da casa do Fred, só alta madrugada alcançou o nirvana, enroscado no sofá do canto.

No quiosque, anorécticos jornais vendem insegurança e medo, intranquilos, invasores, cardíaco relato dum diário crepúsculo. Aconselhado deixar de ler jornais. Aliás, deixar de ler em absoluto. De tão abusadas, gastaram-se as palavras, analfabetos, não descobrimos novas, entre silêncios soltamos enredos, esboçamos adjectivos,  talvez salvemos o mundo aí pelo quinto gin. Limão. É o limão que tira a piada à vida.

Deixou-me, a Mafalda, cansou-se. Também eu a havia deixado já, amancebado com o álcool redentor e concubino. Amigo certo, presenteou-me  com uma poética cirrose, maleita de intelectual, é o mínimo. Não morrerei de pijama, mas de fraque, não se vai para o outro mundo de pijama, espero que no tal Céu haja Visa, parece que não deixam levar dinheiro. De partida agora, posso pensar em novas madrugadas com cravos brancos, quero cravos brancos sobre uma laje fria, fica bem nas fotos, com Chopin em fundo, talvez o Fernando faça um poema. Campa, sim, quero uma campa, grunge, alistado no exército de cruzes entre memoriais de defuntos imortais, nada do irrespirável e tórrido crematório, coisa para frango ou Joana d'Arc.

Neste último texto registo silenciosos gritos, cúmplices cirroses servidas com caneta de aparo. Passou a Ângela no calçadão, trauteio baixo para comigo a Alabama Song, pelo retrovisor vejo o Max no banco de trás, grande Max, já partiu, e de fraque, sete Outonos atrás, espera aí Max, vou a caminho!

É cruel,a caneta de aparo. As palavras sangram e impiedoso  o aparo mata, invasiva arma contra as palavras vãs, com tinta preta se deviam proclamar revoluções, gritar esperanças, borrar  epitáfios, apunhalar palavras errantes  em confidenciais cadernos.   

É Sábado. Cristo morreu, Marx também, e não me sinto lá muito bem. São cruéis os sábados, convocam à lassidão do corpo. O homem de Nazaré morreu numa sexta, aninhado entre pregos de aço, ressuscitou num sábado à noite, hora de Greenwich. Todos os dias ressuscito para tornar a morrer. Melhor ir a um copo no bar. O sol, esfíngico, põe-se no horizonte, não serviu de nada hoje, fugido do Verão, o CD no carro repete Alabama em looping, talvez o Kurt e o Brecht queiram um bourbon, fico-me com o Jim. Aguarda, Max, vou já!…"

Pedro Toscano, poeta de cirroses, sempre em copo alto, na véspera da Libertação. E o Visa?

publicado por Fernando Morais Gomes às 22:56

29
Jul 11

Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amen. Aprouve-me, a mim Afonso, Rei dos Portugueses, filho do Conde Henrique e da Rainha Teresa e neto do Rei Afonso, e à minha mulher, Rainha Mafalda, filha do Conde Amadeu, dar-vos, a vós que habitais em Sintra, da classe superior ou da inferior e de qualquer ordem que sejais, e a vossos filhos e descendentes, carta irrevogável, de direito, estabilidade e serviço.”. Assim começava Mestre Alberto, tabelião régio, a carta de foral que finalmente Afonso Henriques outorgava à vila de Sintra. Deixada uma trintena de cavaleiros no castelo donde os mouros haviam debandado, vinha agora uma delegação dessa vila a prestar vassalagem e saber que ordenava el-rei para a antiga praça moura. D. Afonso anuiu, e à audiência assistiram Pelagio Zapata, Gonçalves de Sousa, Pedro Fernandes e o arcediago de Lisboa, Sancho Moniz Egas. Por ele, lhes dava trinta casais, um para cada família, por direito hereditário e sem tributo a Lisboa, também a habitual parte em seara ficaria dispensada. Pelagio Zapata, mestre em leis, aconselhava sobre as melhores regras para a boa aplicação da justiça:

-Senhor, acertado será que para os que vossas leis não acatem tenha a justiça pesada mão: não passe homicídio ou violação de mulher sem que quem tais crimes cometer pague dez morabitinos, metade para vossa majestade, metade para o queixoso. E quem assaltar a casa alheia, que pague sessenta soldos, metade para el-rei e metade para o queixoso. Quem ferir outrém com lança, espada ou faca, cinco morabitinos, metade para el-rei e metade para o queixoso. Quem viver amancebado com mulher séria, um morabitino. E quem ferir ou espancar outra pessoa, receba dez varadas. Sábio será propor que quem brigar com armas e, tendo ido a tribunal não se emendar ao fim de três vezes, tenha a casa derrubada. Proponho que no foro de Sintra haja seis juízes no julgamento de homicídios e três em quaisquer outros.

D Afonso, agasalhado com uma pele, dado o frio de Janeiro, anuía com a cabeça, Sintra como ponto alto, sentinela de toda a largueza do Tejo carecia de bons cavaleiros, leais mas recompensados:

-Honrados sejais, nobres cavaleiros, mas um conselho vos dou: quem se servir de armas sem razão dentro da vila, há-de perde-las; mas se questões houverem entre vós, não se julgue o pleito pelo foro de Sintra no que respeita ao elmo e à loriga, mas apenas quanto ao escudo e à clava. E não entre lá homem de outra terra: tal o recado que mande,  tal lho mandem a ele, igual por igual; e seja a sua caução ou fiança de um soldo, se houver junta ou destrinça.

A Gonçalves de Sousa, senhor de Lamego, chamara a atenção o enorme exército de mouros forros trabalhando nas noras e hortas das férteis várzeas de Almargem, também aí convinha a mão real chegar:

-Curial será, senhor, que peões que lavrarem com um só boi paguem um sexto de trigo e cevada, e se lavrarem com dois ou mais entreguem um quarto, entre trigo e cevada, por alqueire do mercado. Justo será igualmente  se pagarem um puçal de vinho a tirar de cinco quinais. O rei, pouco dada à lavoura, mandou Mestre Alberto escrever:

-Que se lavre como ordem real: quem lavrar com bois, não pague tributo por qualquer ganho. Caçador que apanhar cervo ou cerva, ou caça do género, com laço ou armadilha, entregue meio lombo; se for porco, uma costa. O batedor de coelhos entregue uma vez por ano três coelhos com suas peles. Ao colhedor de mel selvagem, que entregue uma vez por ano, meio alqueire do que tiver colhido. Paguem por ano o sapateiro um soldo, o ferreiro ferre um cavalo, o mercador e o peleiro um soldo cada! . Mestre Alberto sorria, com os anos Afonso aprendia a ser rei, menos dado a correrias em tropel atrás dos mouros, havia que ser forte na justiça e clarividente a pensar nos cofres.

Peres Ramires, dos de Sintra, chamava a atenção sobre os limites das terras sob alçada da régia. Pelágio Zapata, que lá estivera na conquista sete anos antes, avançou com uma proposta: desde Almosquer, pela vertente e outeiros, servindo de limite um caminho público em Cabriz, até ao monte e dessa vertente pelos outeiros até ao limite de Cheleiros, seguindo daí até ao rio em Galamares. Aos cavaleiros de Sintra, aquartelados no Arrabalde, agradava, assim ficaria. A D. Afonso importava o concurso dos homens de armas, os cavaleiros deveriam combater uma vez por ano no exército e estar disponíveis para pelejar. Respeitosos,, todos ajoelharam, o Conquistador lavrada a carta apôs o selo real, bem como a rainha, na presença dos confirmantes: Pedro Pelágio,  príncipe de Lisboa, Afonso Mendes, príncipe de Coimbra e Rodrigues Pelágio, príncipe de Santarém. Era o dia 9 de Janeiro de 1192 da era de César.(* 1154 da era de Cristo, mais tarde adoptada.)

Retirando para os aposentos, molestado por dores e chagas, sequela de  de pelejas antigas, D. Afonso saudou os trinta, um a um,  e mandou-os em paz, os mais próximos viram que coxeava duma perna. Virando-se para Peres Ramires, ainda esboçou umas palavras finais:

-Lavrada fica a palavra do rei. E se alguém desfizer este contrato, com Satanás seja excomungado!

No dia seguinte, e na posse do precioso foral, os trinta de Sintra volveram ao Arrabalde, como sempre envolto em neblina e agora terra de el-rei. Logo mais, irmãos templários se juntariam no termo, desde o cabeço da serra e estendo-se até ao mar, uma nova ordem nascia, e em harmonia, por muitos anos, cristãos, marranos e mouros haveriam de ver crescer hortas e destros caçar gamos na serra, acolher reis e a  alguns aclamar.

 

publicado por Fernando Morais Gomes às 17:37

28
Jul 11

Alberto Andrade, abastado empresário de mármores e comandante honorário dos bombeiros, assediado pelo partido do governo, aceitou ser cabeça de lista às autárquicas desse ano. Mecenas de varias agremiações, habituado a contribuir para as campanhas, entendeu  ter chegado a altura de também ele dar a cara, ao menos pagaria cartazes onde apareceria, benemérito e filho da terra, até a oposição se renderia aos seus méritos. Visitadas as agremiações, prometidos os melhoramentos, reclamadas obras sempre adiadas, suplantou o melhor resultado do partido. Com maioria absoluta e total desconhecimento das funções, foi eleito presidente da Câmara e lá tomou posse num dia frio de Janeiro, o Andrade da pedra era agora o senhor presidente, prestimoso e patriarcal. Vitorioso, no dia da posse o carro da presidência, solene, lá foi buscá-lo e à D. Leontina, agora ufana primeira dama, para raiva das vizinhas.

No discurso de posse, prometeu trabalho, citou autores que o Frederico,recente advogado e seu sobrinho lhe alinhavou num papel, terminadas as ovações, estava inaugurada uma etapa decisiva a caminho do progresso.

Alberto,patrão de três fábricas, accionista dum banco, duma gráfica, sócio de uma central de betão e de uma imobiliária, chegado à Câmara e nomeado o Frederico para chefe de gabinete, logo começou a despachar: primeiro, os processos de obras, a construção era o progresso, uma casa para cada casal, nada que a sua imobiliária ou central de betão beneficiassem directamente, apenas cumprir promessas eleitorais, os alvarás de loteamento aguardavam na pasta do despacho, havia que dar prioridade e ser criterioso: primeiro os empresários do concelho, ninguém lhe perdoaria a falta de atenção, sem parar,o voice mail do telemóvel recordava nomes e números de processos,  as suas gruas e betoneiras dariam apoio, criando futuro e colhendo dividendos. Depois, escolher os mais competentes, sem olhar a ideologia ou amizade. Nos cargos sensíveis, não, aí havia que assegurar fidelidades, a matilha da oposição espreitava por todo o lado. Ao cunhado, de licença sem vencimento nos correios, fez administrador da empresa dos resíduos, a varrer o lixo dos antecessores, o Gameiro, contabilista da firma de betão, passou a avençado do pelouro de obras, magnânimo, mandou admitir o neto da Gina, os filhos da terra primeiro, havia que sacudir as toupeiras de Lisboa enfeudadas aos aparelhos.

Tamanho voluntarismo e só para uns começou a preocupar o partido, os nomes sugeridos para chefes não avançavam, depois de eleito, o candidato que a concelhia antevira como corta-fitas amansado, tomava rédeas e alforria, capitão da indústria com provas, seria agora firme condutor de destinos. Em reuniões e em privado, o Albino, vice-presidente e chefe local do partido ia soltando remoques, Alberto estava a esquecer a concelhia, a distrital, ultrapassada, bufava. Certo dia, a medo, o Albino discordou do despacho isentando de taxas um loteamento do Alberto, acumulando reparos, ia tudo num sentido só. Alberto, presidencial e vingativo, retirou-lhe os pelouros, para os jornais, Frederico gizou uma nota, alegando “cansaço do senhor vereador”. Com legislativas à porta, impunha-se prudência, e não levantar ondas. Posta a eleição, Albino entrou em guerra aberta com o antes grande conterrâneo e aos poucos, relatos selectivos  de excessos iam sendo soprados a jornais amigos, denunciando nepotismo e uma vergonhosa cedência a “cunhas”. “Com grande pesar, e para respeitar os eleitores”  o partido acabou tirando-lhe  o apoio.

Alberto Andrade desdenhou, era o presidente, nas festas de Verão ou nos almoços de bombeiros era com ele que todos vinham ter, os antigos sabiam quem era, vindo de baixo, ganhara calos a trabalhar, os aperaltados do partido que se danassem, nas próximas eleições concorreria por outros. A máquina partidária, porém, começou a pressionar, os comunicados com farpas para os jornais e duelos verbais em reuniões da câmara iam-se sucedendo, ironicamente, era a oposição quem defendia Alberto, assim almejando dividir e  atingir o adversário. Num agravar da guerrilha, a concelhia  pediu intervenção do governo, da mesma cor política, por sinal: eram os alvarás aos amigos, os ajustes sem concurso, os empregos a conhecidos, alguns, de outros partidos até, como era possível desprezar tanto quem lhe dera a mão para a política. Inveja, comentava Alberto com os amigos, nas eleições seguintes se veria, como compreendia agora tipos trabalhadores como o Isaltino. Não negava que por vezes fora bafejado, industrial do concelho, era natural, ganhando ele ganhavam todos, mais construção, mais estradas, mais escolas, mais empregos, garantia de carreiras, bem compreendia agora os abutres do partido, que o queriam marioneta, mas haviam-se enganado, já ele cá andava, no duro ainda os patetas não haviam nascido.

Correndo solitário, teimoso e não escutando ninguém, não tardou que várias irregularidades fossem detectadas, o Albino e o partido não desarmavam, despejando queixas sobre queixas contra o poderoso homem dos mármores. Contratado um advogado afamado, Alberto desdenhou, com um despacho manuscrito pelo seu punho mandou mesmo despejar o Albino da câmara, colocando-o num anexo ao canil, “enquanto durarem obras urgentes no gabinete do senhor vereador”, justificava o Frederico, em comunicado à imprensa. A coisa azedava, por fim já nem se falavam.

Meses mais tarde, o tribunal decidiu: Alberto cometera irregularidades e deveria deixar o lugar, qualquer recurso não suspenderia a decisão. Incrédulo e furibundo, quis almoçar com o juiz, para cara a cara  perguntar como ousara tal dislate, o advogado, moderado, a custo tentou demovê-lo, o juiz veria mal tal interferência, seria melhor acatar. Atirando com as flores da jarra à parede do gabinete, onde com a força do arremesso o seu retrato em pose se quebrou em cacos, jurou vingança. Em poucas horas teria de deixar o gabinete, os engravatados sem calos haviam ganho uma batalha, mas não a guerra, jurava.

No café anexo à Câmara, Albino e mais vereadores do partido, ufanos, pagavam rodadas e celebravam. Como novo presidente, atenta a lei em vigor, Albino Carneiro, eufórico, prometia influentes lugares de assessor e todos os processos despachados com celeridade. Mas com total isenção, garantia,  eivado de espírito de justiça e equidade, nada que lembrasse o despótico Alberto, era o seu voice mail que se enchia agora. Na pele e de surpresa, o partido aprendera o quão perigosos podem ser  os independentes.


 

publicado por Fernando Morais Gomes às 17:23

27
Jul 11

Simães, para os lados de Fonte Arcada, acordou acabrunhada e de luto, Custódia Teresa, a mulher do José Joaquim finara-se de noite ardendo em febres, na flor da idade ainda, iria fazer falta ao José. Passada a notícia porta a porta, mulheres da aldeia amortalharam o corpo e velaram-no em casa, hirto, lenço atado à cabeça para que a boca se não abrisse. O padre Lopes sabia já, a Maria Vidas avisara e esperava para saber a hora do enterro no adro do mosteiro de Fonte Arcada. Apreensivo, o padre informou que aí não poderia enterrar a Custódia, leis novas obrigavam a que um médico observasse o cadáver e que o enterro fosse fora do templo, teriam de falar com o administrador do concelho, na Póvoa de Lanhoso. Era 22 de Março de 1846 e desde 1844 que o governo de António Bernardo da Costa Cabral havia proibido enterros nas igrejas e imposto o depósito dos restos mortais dos falecidos, após o registo do óbito e paga a taxa de covato, em cemitérios em campo aberto. Graves distúrbios haviam ocorrido já a 20 de Janeiro, aquando do enterro do Joaquim Ribeiro, o povo discordava da medida, herética e jacobina:

-Pode lá ser, senhor padre Lopes!- gritou a Maria Vidas, larga de ancas, um ponto negro no buço a realçar-lhe a cara desfavorecida - aqui nunca houve médico, e os nossos sempre repousaram em lugar pertencente aos filhos de Deus! Desalmados! Julga mandar mais que o povo, esse Cabral lá de Lisboa?

A Maria Angelina, vinte anos, moça trigueira e irmã do sapateiro, acompanhava a vizinha, exaltadas, invectivaram o pároco, a face irada realçava-lhe os traços esbeltos, roliça, com saia vermelha e segurando a foice que trazia do espigueiro. Não podia ser, tal desaforo e impiedade, o inusitado alvoroço matinal no adro da igreja despertou a vizinhança, juntando o mulherio em segundos, meia hora mais tarde eram mais de vinte, à porta da taberna, poltrões, os homens comentavam, sem interferir. Chegado o médico para atestar o óbito, à vista da ameaçadora turba de saias, correu por poiso seguro, valeu-lhe o major Veloso, da Arrifana, que o  recolheu na adega. Na casa do José Joaquim, o corpo de Custódia esfriava, quente, o povo pedia sangue.

No dia seguinte, desafiadoras, as mulheres juntaram-se no adro do mosteiro, desta feita com alguns homens atrás, a Maria Angelina trazia duas pistolas nas saias, herdadas do pai. Receosos, o padre Lopes, o acólito e o Válerio, o mordomo da cruz, acharam melhor acatar a nova lei, e conduzir o corpo ao terreno escolhido para cemitério. Novo burburinho se instalou então, à vista do féretro em bolandas pela freguesia. Resolutas, quatro raparigas pegaram no caixão, escusando-se o padre a desobedecer, uma mulher de sobrepeliz tomou as vezes do pároco e insurgente, um cortejo fúnebre de roçadoras e forquilhas erguidas,  desafiador, levou a Custódia à última morada no mosteiro de Fonte Arcada.

A medo, surgiu-lhes o administrador do concelho, aconselhando recato, se insistissem teria de chamar a guarda, Maria Angelina, à cabeça das mulheres, não deu sinais de hesitar, o povo decidira:

-A Custódia descansará onde descansam os pais e avós, senhor administrador. Abaixo os Cabrais! Abaixo os Cabrais!- gritava, secundada pelo povo, em uníssono, o chefe do governo e seu irmão,  ministro da Justiça e autor da iníqua lei eram invectivados como falsos e hereges, pecadores, arderiam no Inferno. Á porta da igreja, as mulheres montaram guarda para que não entrassem homens e deram missa, quatro delas, mais novas, abriram uma cova, sob gritaria da turba, ali  nesse mesmo dia repousaria a Custódia, como todos antes dela.

Na manhã de 24,a notícia dos desacatos em Simães trouxe a autoridade, três das supostas cabecilhas foram identificadas e presas, a Maria Vidas, a Custódia Buceta e a Joaquina Carneiro, da Fonte Arcada, e levadas sob prisão, nas ruas gritava-se e agarrava-se tudo com que se pudesse atacar os escrivães. Só no dia imediato as autoridades se deslocaram à igreja para elaborar o auto de enterramento e removerem o corpo da Custódia. Tocados os sinos a rebate, mais de duzentas mulheres apareceram, enchendo o adro. Sob insultos, o juiz Joaquim de Sousa foi agredido nas costas com uma pá de forno, o pobre do escrivão, o Narciso, amedrontado, na fuga, perdeu o chapéu, que algumas espetaram num varapau como troféu guerreiro, a autoridade era desautorizada e no adro os coveiros que retiravam o caixão da Custódia apedrejados no interior da cova. Por toda a Fonte Arcada e Póvoa do Lanhoso se pedia sangue.

Em magote, a Maria Angelina e outras mulheres dirigiram-se ao cruzeiro a pedir a libertação das amigas presas, Maria Angelina, saia vermelha e pistola na mão, destacava-se na multidão. Desculpando-se o juiz com o carcereiro ausente, e único com a chave das celas, sacando de um machado partiram a porta, soltando as heroínas detidas. O povo delirava, a autoridade temia. Tomando-se de pruridos, o escrivão até ali amedrontado, ganhou coragem e de caneta em riste perguntou às mulheres qual o nome de Maria Angelina, a mais barulhenta, de saia vermelha e pistola, uma das mais agitadas frente ao cartório do juiz. Sem desarmar, uma delas, olhando o escrivão com desprezo, gritou-lhe o nome, orgulhosa:

- É a Maria! A Maria, da Fonte Arcada!

Sem tempo para pormenores ou apelidos, canino e servil, o escrivão anotou:” Maria… da Fonte..”, já tinha um nome para dar ao juiz. No cruzeiro, as mulheres abraçavam-se, com Maria Angelina em destaque, por essa vez a Custódia descansaria em paz, à cautela,dois covais ficariam abertos à espera dos Cabrais, ou de outros que  por lá aparecessem.

Durante dias, a sanha libertadora das mulheres da Póvoa de Lanhoso, ao rebate de sinos nas aldeias e paróquias mostrou sem medo quem eram os de lá do Marão. Tendo sido ordenado o recenseamento das propriedades, para melhor se cobrar impostos, mulheres do Minho sem medo haviam assaltado casas dos administradores e queimado as papeletas da ladroeira, as bilhetas que identificariam os prédios, até José Teixeira, o temido Zé do Telhado ajudara, amigo dos pobres. Maria Angelina, desafiadora, ainda respondeu em tribunal, mas o povo por essa levara a melhor, cantando empolgado no largo da praça da Fonte Arcada:

É avante, portugueses!

É avante, não temer!

Pela santa liberdade,

Triunfar ou perecer!

Triunfar ou perecer!

 

publicado por Fernando Morais Gomes às 16:02

26
Jul 11

Indeciso entre Filosofia e História, militando na senda de amanhãs libertadores, Jaime acabou ingressando em Direito, à rotineira repetição dos feitos pátrios que um curso de História propiciava, apesar de apaixonado pela História, atraiu-o a visão detectivesca do advogado à Perry Mason, onde a meio do processo entra a prova decisiva que vai arrasar a acusação e salvar o inocente. Lírico, ingénuo mas puro, nos finais de setenta lá ingressou na Clássica, mausoléu frio e sem alma, ainda arrefecendo de acaloradas disputas entre fascistas e maoístas, as pinturas de Ribeiro dos Santos e Maximino de Sousa, à moda de Mao e Lenine, saudavam os heróis da casa, bastião do poder velho e balão de ensaio para futuros mestres da lei.

Direito era uma coisa anódina, de classe, pouco aberta ao mundo, cheia de “de cujus”, e “quid juris”, manuais gongóricos teorizando um mundo virtual onde por vezes até pessoas cabiam. Pensou desistir, impregnado de Marx e Gramsci, do Che e Neruda, as miúdas mais giras estavam em Letras, só a Manuela, olhos verdes, “res nullius” doce e sem namorado, o fez ir ficando, estudando juntos na biblioteca, aos poucos trocando olhares por entre a sebenta do Direito Civil e os manuais de Marcelo Caetano, nunca como nesses dias acharam tão acertados os direitos reais de gozo, amigos pela usucapião do tempo, amantes por vontade expressa, em contrato-promessa primeiro, sinalagmático e com execução específica depois. Ao segundo ano assumiram a relação, as mãos entrelaçadas nas aulas do professor Marcelo seguiam nem sempre atentas o estudo dos sistemas políticos, Jaime e Manuela concordavam, recentes conversos, democratas nas ideias, ditadores no amor. O professor Marcelo, atrás da barba mefistofélica ria divertido, no dia da oral de Constitucional sendo Jaime o último da tarde, convidou-o no final para jantar. Um bife na Trindade a coroar o suado 14, já depois das dez da noite premiava o promissor constitucionalista.

Ao terceiro ano, desistir estava já  afastado, as coisas com a Manuela estavam firmes, casariam no fim do curso, ela com ideias no CEJ, futura juíza, ele entre a diplomacia e a barra, tinha dois anos pela frente. As paredes antes frias, eram agora familiares, muitos  envolviam-se na política, à esquerda e à direita, os mais velhos, na fase da gravata, iam ostentando antecipado o epíteto de doutor que com o tempo viraria nome próprio. O caderno na mão e a sacola do primeiro ano virava pasta de pele, camisas com botões de punho, óculos sem aros, às barbas hirsutas e revoltas sucedia o penteado tratado, o jurista em construção, artigo a artigo, diploma a diploma, fazia o caminho iniciático de cavaleiro do Direito. No quarto ano, Jaime integrou uma lista para a associação, a morte recente de Sá Carneiro e a crença cada vez mais ténue em soluções de ruptura, levaram-no ao PPD, Santana Lopes, veterano aluno e antes extremista de direita, tambem aderira, o país arrefecia do atribulado PREC. Extinto o Conselho da Revolução, no arco  moderado de partidos do centro se desenharia o futuro. Filiou-se, foi a um congresso, Manuela, equidistante, encafuava-se nos códigos, refinava o aspecto, a teennager inconsciente ia-se apagando à medida que chegava o dia em que o canudo dourado e a caricatura do Zambujal no livro de curso premiariam os novos doutores, qualificados quadros, esperançosas reservas para grandes voos, no foro e na política. No quinto ano, Jaime pela primeira vez envergou traje académico, excrescência fascista banida nos anos setenta e com o tempo recuperada, de chicote em riste ,veterano, praxou os novatos acabrunhados, obrigados a flexões à porta do anfiteatro. Estava quase lá.

Quase doutor, deixou os bares do Cais de Sodré, substituídos pelo Stones e o Ad Lib, frequentou palestras na Ordem, ia agora de carro para as aulas, abandonando o 31 para Moscavide cheirando a suor dos primeiros anos. Aos mais novos, falava dos mestres como de tias velhas mas estimáveis, feras por vezes, “crânios” brilhantes outras, todos com características distintas: os perdigotos voadores de Jorge Miranda, a orelha de Sousa Franco, a quem por só ter uma, tudo entrava por um ouvido sem sair pelo outro, os duzentos quilos da Magalhães Colaço, o velho Soares Martinez, lenda viva de quem inúmeras histórias, verdadeiras ou falsas se contavam, histórias fantásticas de alunos que a exames dele haviam sobrevivido. Finalmente, já com o casamento marcado numa quinta de Azeitão, num dia quente de Julho ele e Manuela acabaram o curso, ela primeiro, com melhor média, ele depois, escritório em perspectiva, uma avença num banco na calha. Com outros duzentos, nesse ano engrossariam o restrito clube de senhores doutores. Longe ia o dia em que Jaime atravessara aquele átrio ladeado de vitrinas com pautas, repletas de notas avaras e angustiado hesitara sobre o passo a dar. Com o tempo, percebera que Perry Mason jazia poeirento em velhos filmes sem cor, que mais que a Justiça interessava o Direito, e mais que o Direito estar com quem o aplica e o escreve. Loquaz, a sociedade abriria portas aos moldados e tolerante suportaria os críticos mantendo assim no ar o perfume brando da democracia e pluralismo.

Passaram trinta anos, Manuela é hoje uma respeitada desembargadora da Relação, com Jaime teve três filhos, um deles recém-acampado do Rossio talvez siga Direito, para já, de mochila, vai com a namorada a caminho do Sudoeste. Jaime, uns quilitos a mais, é poderoso chefe de gabinete dum dos novos ministros, depois de tranquilo deputado por Faro por mais de dez anos. Há dias, acompanhando o ministro a um colóquio, reentrou pela primeira vez em anos no átrio de Direito e sorriu. Lá estavam ainda as vitrinas, os baixos-relevos do Almada, o cheiro familiar e austero. Anos antes, ali entrara querendo salvar o mundo, felizmente e a tempo,  conseguira salvar-se a si próprio.


publicado por Fernando Morais Gomes às 17:46

25
Jul 11

Virgílio Madureira terminava dois mandatos como vereador na Câmara, incompatibilizado com a concelhia, não se recandidatava, uns ingratos, vociferava, tinha sido ele quem os levara todos para lá, pagara inscrições e quotas, queriam agora o João Martins, veterinário municipal, que ficassem com ele, besta amigo das bestas. Oito anos a pugnar pelas estradas alcatroadas, centros de saúde, rotundas, orientara-lhes a vida a todos, seguros no quadro da Câmara, e agora isto. Chegara a pensar ir como independente, capciosos, os da oposição até o sondaram para uma empresa municipal, o seu apoio ainda valia uns votos entre os mais velhos, com a eleição renhida, nada se podia desprezar. Nos oito anos conseguira algum pecúlio, é certo, as empresas da família haviam ganho empreitadas, que culpa tinha ele se as únicas de jeito eram as do pai e do cunhado, nunca interviera na decisão dos concursos.

A próxima eleição e o fim do mandato colocavam a necessidade de pensar no futuro, política activa não, melhor esperar que os novos se desgastassem esses anos, no fim surgiria salvador e compreensivo para salvar a câmara do desastre, desinteressado e bom filho da terra. Havia que encontrar uma montra onde sem estar na política não estivesse longe dela. Pensou nos Bombeiros, mas os chefes estavam de pedra e cal, quis adquirir um jornal que fosse caixa de ressonância mas os existentes tinham passivos proibitivos, finalmente uma ideia: a presidência do Imortal, o clube de futebol, o mandato dos actuais orgãos terminaria daí a um mês, sem dinheiro e resultados a despromoção era segura. Nunca vira um jogo da equipa, curioso foi a um e reconhecido pelo público, lançou o tema das tradições clubísticas e de como era preciso ter um clube na Primeira Liga, dava visibilidade, ele, apesar de ocupado, faria o sacrifício pessoal, se preciso fosse, de constituir uma lista e até avançar com um aval pessoal para as obras do campo de treinos, conhecido como era, traria patrocínios, jogadores de topo, um treinador com créditos e até a televisão. O salto qualitativo tinha de ser dado.

A proposta animou os velhos adeptos, cansados de peladinhas e jogos nos distritais, alguns, antigos jogadores agora entrados na idade, aplaudiam, aos poucos, em jantares e reuniões no escritório de Madureira a lista foi tomando forma, o vereador que não sabia o que era um canto ou um livre e que julgava que os cinco violinos eram peças de arte de algum museu, em duas semanas tirava fotos ao lado da bandeira do clube, na sala dos troféus, reiterava o seu clubismo desde a nascença e prometia cem mil euros só para começar, iria fazer uma grande equipa, um craque brasileiro que o Viegas, antigo treinador e militante do partido lhe sugerira, estava a caminho, por cinco épocas. Sem opositores, uns descapitalizados, outros descrentes, com uma lista de incondicionais recrutados no café do Bigodes, num serão depois do snooker, Virgílio Madureira tornou-se presidente do Imortal com 97% dos votos, logo celebrados com uma rodada geral e a promessa de vitórias e obras no estádio.

Na primeira semana, num mundo até então estranho para ele, surgiram os pequenos problemas: os jogadores tinham prémios de jogo em atraso, havia que pagar, a tesouraria estava nas lonas. mas o velho Lucas, o cobrador, garantia a chegada de verbas da Associação de Futebol e da Santa Casa, nos duches do balneário faltava a água quente, Zezito, o craque brasileiro contratado ao Fanhões ameaçava assinar pelo Alcains, havia até 31 de Julho para decidir. Era um mundo novo. Na primeira saída da equipa venceram por 2-1, na terça a seguir, à porta da direcção os jogadores reclamavam os 300 euros de prémio regulamentar, a ser pago na hora, atrasos dos patrocinadores obrigaram a pagar do seu bolso. Entre problemas e guerrilhas na direcção, ao fim de umas semanas, Virgílio Madureira começava a ficar cansado do clube, sem dinheiro e nas mãos de jarretas que o tomavam como seu, tais os anos que ali levavam, os resultados começaram a desiludir, só  empates, teve mesmo de despedir o treinador, o Vítor de Jesus, que desculpava a falta de soluções com a necessidade de dois trincos, mais barato, optou por demiti-lo e contratar o Alves do talho, que já treinara os juniores.

Certo dia, uma carta das Finanças, justiceira, surgiu a cobrar vinte mil euros de IVA, resultado de facturas falsas que anteriores direcções haviam passado, parte delas de favor para ajudar  contabilidades de amigos, dez dias para pagar ou penhora de bens. Sem dinheiro em caixa e com quotas de cinquenta cêntimos, a situação parecia negra, os directores olharam para ele, estava na hora de ver algum dos cem mil euros, silencioso, Virgílio nada disse e marcou uma reunião com todos os órgãos sociais, a situação era de emergência, os jornais locais falavam em “buraco” e nos riscos de o Imortal fechar.

Dois dias depois, à hora agendada, lá se juntaram os directores, o Tomás do videoclube, vice-presidente para as modalidades, o eterno Serafim, que já estivera em vinte direcções, sócios antigos exigiam firmeza com as Finanças, eles contribuíam já com seis euros anuais, o que tinham feito ao dinheiro, perguntavam. Passavam dez minutos das nove, um sujeito de blaser azul apareceu trazendo uma carta para o presidente da Assembleia. Curioso, o dr. Figueiredo, e igualmente médico do clube abriu e leu em voz alta: pesaroso, o presidente alegava graves problemas de saúde e pedia a demissão, confiante que o vice e agora novo presidente, pelos estatutos, o Tomás do videoclube, faria um grande lugar, conduzindo o clube ao lugar que merecia. Por ele, descansaria uns meses em Marbella, a conselho médico, era outro o seu futebol, para ele chegara a hora de mudar de jogo.


publicado por Fernando Morais Gomes às 20:27

24
Jul 11

O Verão em Sintra era sempre um projecto de Verão, noites cacimbadas, o glaciar da Praia das Maçãs para descobrir, a nortada agreste e certa, soprada desses Açores desmancha-prazeres. Quando se está em Sintra, está frio, quando se volta a Lisboa anseia-se pela rápida fuga desse inferno marroquino, tórrida África com Torre de Belém dentro. Não havia meio termo. Gilberto pensara em Albufeira, a doença da mãe aconselhava a ficarem por perto, há vinte anos que não veraneavam na casa de Colares. O sítio pouco mudara, o Pomarinho, os patos no rio, agora sustido na estival represa, o quiosque dos jornais para o diário abastecimento de notícias com que se entreteriam as meias de leite com torradas no Cantinho da Várzea. Os plátanos junto à adega, que tanto barulho haviam gerado, lá estavam, renovados, tudo nos seus lugares, o Miguel Esteves Cardoso, recente morador na zona, escrevia agora esotéricos monólogos sobre couves, nabos e outros magníficos tesouros do mundo das hortaliças, a sua fase bucólica pós-menopausa, por certo. Nunca o vira pelos cafés da zona, pelo Público se sabia por ali andar em transumância, ia-o seguindo ao pequeno-almoço na coluna ao lado do Bartoon.

Colares conservava aquele ar anos cinquenta, carente de obras, chalés onde o dinheiro fugira ingrato para outras bandas, pérgulas a carecer de pintura, jardins irregulares e selvagens onde  aloés e sardinheiras imutáveis cresciam há muitos anos. Apesar do tempo, pouco mudara, melhor assim. A praia denunciava um ar decadentemente suave, amontoado branco de casas desordenadas, de várias épocas e cada vez piores gostos, o pátio do Búzio deprimia pelo dissonante  quintal das traseiras sem jeito,  que saudades do velho barracão do cinema, dois filmes, cinco escudos, a Xana pasmara de ali ter havido um cinema. Mas houve. E o Quivuvi, e o Casino, e a Concha, e o Bibió com as bandejas do sr.Rui, e o Xiripiti junto ao Neptuno, e a parafernália de baldes e pás para as ruidosas construções na areia. Gilberto tinha nostalgia desses tempos, outra encarnação, talvez por os saber desaparecidos veraneava mais noutras bandas, menos epidérmicas e com menos passado, aos miúdos apenas chamara a atenção venderem-se pizzas, e o Maçãs, onde com novos amigos do Banzão curtiam agora os sábados à noite.

O escritório fechara em Julho, Gilberto, para lá dos cinquenta, com os seus calções verdes e panamá azul enterrado na cabeça, diária e religiosamente dava a volta à praia depois de se abastecer de notícias no quiosque de Colares, familiar,  o velho Alberto do Búzio arrastando décadas de praia lá estava, sentado junto às sapateiras e robalos, o eléctrico partia e chegava rangendo como nos velhos tempos, Gilberto nunca mais nele andara, perdera a piada, com a idade já não podia ir no estribo a roubar fruta das árvores, os carros  acelerados na estrada ao lado não seduziam.

A praia perdera carisma,  prédios plantados na Tomadia a lembrar a Quarteira de mau gosto e espetados a ferros, até lojas chinesas havia já. O vento, esse, familiar, continuava o mesmo, que saudades da velha das bolas de Berlim e das batatas fritas Ti-Ti. Em tempos jogara futebol no recinto da praia, agora sintético, alguns velhos amigos ainda por lá andavam, barrigas de cerveja e carecas recentes, sempre jovens uns para os outros, o passado logo celebrado com uma amarela fresquinha a cada reencontro: o Tavares vivia em Inglaterra, dois putos já casados, o Adriano morava em Janas e era bate chapas, ele, como veraneante, sumira uns bons anos, gestor numa empresa informática, os anos das vacas gordas mais em Ibiza ou  no Algarve.

A casa de Colares levara obras uns anos antes, janelas, esgotos, churrasqueira nova, pouco restava do alçado à Raul Lino construído pelo pai nos anos sessenta, memórias, sim, muitas, o mundo era outro porém, os filhos dos velhos amigos adultos e feitos, os pêssegos e peras de vez sumidos, até o pão quente de Nafarros às cinco da manhã, após noitadas heróicas, reconfortante a fazer lastro acabara. Era bem diferente, nesses tempos, a aventura de deixar Lisboa para dois meses em Colares, qual viagem ao interior profundo, os cobertores, o fogão, as compras frescas na praça de Sintra ou na feira de S. Pedro ao domingo, galinhas e coelhos vivos, uvas, pão de Mafra a estalar. Agora eram as romarias para o shopping, industrial, o anódino código de barras, algumas tias renitentes haviam inventado o  mercado de frescos em Almoçageme, aí aos sábados seriam de novo chamadas “madames” e hierarquizadas as compras, nada que tivessem na caixa do hipermercado, como eram engraçadas com as unhas pintadas de vermelho vivo simulando sabedoria a escolher os rabanetes e melões que velhotes, agora rebaptizados de produtores biológicos, vendiam à beira da estrada.

Gilberto viera por quinze dias mas o verão chocho e avaro em sol mal o tirara de casa, lendo e tratando da relva. Até o calor a maldita troika levara, canibalizando o sacrossanto verão lusitano, pensava. Como a maioria, trocara o lavagante pelos percebes, James Marten’s nem ver, diabetes oblige, de quando em vez uma salada de polvo ou de ovas acompanhava a fresquinha da tarde. Descobrira uma moqueca de camarão num restaurante da praia, a repetir, os dias iriam correndo entre a leitura e o portátil e vespertinos passeios no calçadão da Praia Grande. No fundo,vivia tranquilo. Cortara Cancún e o resort, os anos despreocupados iam agora distantes, estava em casa, afinal, navegando seguro num passado que nenhum spread ou rating poderia apagar. Afinal, quem tem saudades do Inverno, sempre passa o Verão em Sintra, não é verdade?

publicado por Fernando Morais Gomes às 22:59

Peste e sedição assolavam o Reino nos fins de 1382 quando João das Regras, doutor em Leis e brilhante discípulo de Bártolo, regressou a Portugal, aboletando-se em casa do padrasto, o velho Álvaro Pais, antigo chanceler, agora padecendo de gota. D.Fernando finava-se, a rainha Leonor passava por barregã de Andeiro, conde de Ourém, a princesa Beatriz, de apenas seis anos, contraíra casamento com o rei de Castela, iam agitados os tempos em Lisboa, João pensava se melhor não seria ter-se ficado por Bolonha.

O padrasto, moribundo, empenhava-se na perda de Leonor Teles, perigava o trono com os intentos de sucessão de D.João de Castela, a que acresciam as pretensões dos filhos de Inês de Castro, Álvaro Pais, velho português, apoiava para o lugar o discreto Mestre de Avis, filho de D.Pedro, mas bastardo de Teresa Lourenço. Ainda em 1383, na sua torre de Lisboa Álvaro convencera o irmão de Leonor, Afonso Telo a conspirar contra Andeiro, e por essa via contra a irmã, na sua casa, além de João se reuniam Rui Pereira, tio de Nun’Álvares, João Esteves de Azambuja e Martim Afonso da Maia. Primeiro passo: convencer o Mestre a matar o Andeiro, que por completo manietava a rainha Leonor, no paço e na alcova. Indeciso e receoso, o jovem mestre apresentou-se a Leonor Teles, a viúva recebeu-o, Andeiro estava na sala. Titubeante, ainda receou, mas cruel o punhal de D.João tirou a vida da erva daninha, saudado na rua pela turba, que a invectivava como adúltera e bandeada com os de Castela.

João das Regras manteve-se distante, recém-chegado de Bolonha, idoso e manco mais ágil parecia Álvaro Pais, empenhado em impedir o cada vez maior jugo castelhano. Depois de morto o Andeiro, juntou o povo no Rossio, aclamando o partido do Mestre,  doente,  propusera até a Leonor Teles o enlace com o Mestre  para evitar um conflito. Retirada para Alenquer, Leonor repudiou-lhe as ideias, Beatriz seria rainha e ela regente, o mestre, pusilânime queria sair para Inglaterra. Morto D.Fernando o reino parecia a ferro e fogo, com os nobres torcendo por Castela e por D.Beatriz, a herdeira de sangue, só frei João, o santo eremita  a pedido de Álvaro Pais impediu D.João de partir de vez, assustado.

Havia que repor a ordem. João das Regras, mais sereno que o padrasto, sugeria a imposição da lei, um governo rebelde foi então criado sob sua direcção, brilhante jurista e estrangeirado. O arcebispo de Braga, também homem de leis, Rui Pereira, João Gil e Martim Afonso da Maia compunham o grupo, o inglês Percival substituía D.Judas na guarda do Tesouro. O rei de Castela espreitava porém, e entrado pela Guarda veio reclamar os direitos da esposa. Desentendendo-se com Leonor Teles, enviou-a para Tordesilhas, donde mais não saiu. Lisboa resistia, contudo, durante meses pôs cerco à cidade, só o alastrar da peste negra provocou a debandada castelhana.

Quase dois anos haviam passado desde que D.Fernando se finara e o Reino permanecia em sobressalto, Nun’Álvares no Alentejo repelia os de Castela, herói da peonagem nos Atoleiros, impacientava-se com a delonga em colocar o Mestre no trono. Decidido, João das Regras entendeu então chegado o momento de reunir as Cortes, seriam em Coimbra, em Março desse ano de 1385

O Mestre chegou já rei na vontade do povo e dos homens dos ofícios, também o clero estava por ele, apoiante de Urbano VI, que ocupava o trono de Roma, ao invés do rei de Castela, que seguia Clemente VII, o anti-papa de Avignon. Mais renitente estava a nobreza, o senhor de Sintra, Henrique Manoel de Vilhena e outros tomaram partido por D. Beatriz, também o alcaide de Coimbra  os Vasques, senhores da Beira, os Melos optavam por tal solução. Era a vez de João, o homem de Leis, alto, magro, envergando a loba negra dos letrados entrar em cena. Duravam as sessões atribuladas um mês já quando finalmente usou da palavra, Coimbra calou-se para ouvir o discípulo de Baldo:

-Nobres procuradores, eminências, venerandos alcaides, supõem muitos nesta sala não existirem herdeiros do trono de Portugal. Há-os, e muitos! A dificuldade é escolher um entre tantos!- João fez silêncio e depois de um compasso, olhando a assistência continuou:

-O primeiro é El-Rei de Castela!- A sala ficou gelada, como podia o enteado de Álvaro Pais, defensor do Mestre, ter tal ousadia, com o povo todo contra os castelhanos? Sagaz, seguindo o seu plano, João das Regras continuou:

-El-rei de Castela é co-irmão do amado e defunto rei D.Fernando, e legítimo esposo de sua filha, a infanta D.Beatriz, e logo também ele co-herdeiro, dada a menoridade da dita senhora. Também os infantes D.João e D.Dinis, filhos de el-rei D.Pedro e da senhora D.Inês de Castro são de estirpe real. São quatro pois os putativos candidatos. E, ironicamente, o reino sem rei, eminentes procuradores! Com tantos herdeiros, e tão dignos, qual deles deve cingir a coroa de Portugal, segundo as regras do bom Direito? Para vos poupar trabalhos, vos digo, nobres procuradores, estão vagos estes reinos, e nenhum dos que nomeei os pode herdar!. A sala permanecia em silêncio, o Mestre, num canto, nada dizia, embevecido com a eloquência de João. Demolidor e certeiro, a sentença não tardou:

-Nulo é o casamento d’el-rei D. Fernando e de D. Leonor Teles, por ser ela anteriormente casada e serem ambos parentes. E assim fenecem de lei os direitos de D. Beatriz e de Sua Majestade o rei de Castela, seu esposo. O qual, repudiando a sagrada autoridade do Santo Padre Urbano, se tornou herege, ameaçando estender a excomunhão a este reino, se porventura de Direito o herdar. Restam, contudo, os infantes D. João e D. Dinis, filhos do saudoso rei D. Pedro e da malograda D. Inês. Também aqui subsistem dificuldades. Se é certo que D. Pedro sempre alegou a seu pai ter casado em vida com a dita senhora, onde foi tal união celebrada? Que provas há que tal enlace tenha ocorrido? - na assistência, Diogo Lopes Pacheco, um dos carrascos de Inês anos antes e entretanto reabilitado, já velho, assentava com a cabeça, apoiava agora o Mestre de Avis.- Em que dia, em que sé, quem foram as testemunhas? Não, meus senhores, nada existe, pois nunca foi celebrado semelhante casamento! E mesmo a ter ocorrido, tantos seriam os impedimentos que nunca o Santo Padre o poderia validar!. São pois bastardos e naturais os filhos d’el-rei D. Pedro!

A sala estava perplexa, D. Lourenço Vicente, o arcebispo de Braga exultava, também ele um homem de Bolonha, alguns procuradores do Porto esbracejavam, ante o impasse. João das Regras, tecendo o seu novelo, nada mais disse, a sessão terminou ali, para só ser reatada passados dias.O plano urdido fazia o seu caminho.

Na reabertura das Cortes, trazia um maço com provas: uma carta de D. Pedro ao Papa pedindo para desposar Inês, a que este nunca respondera.Provas de que os filhos de Inês haviam pegado em armas contra o Reino, contra ele se colocando. Achando o momento propício, qual Cícero no Senado romano, João atirou o laço com que em definitivo arrebataria a assembleia:

-Venerados procuradores, quebremos o impasse que tanto trás em cuidados este Reino e aclamemos pois como nosso rei aquele que cumpre aclamar, para não cairmos na sujeição dos nossos inimigos e heréticos! Aclamemos como rei a D. João, mestre de Avis, filho natural do falecido senhor D. Pedro, defensor e regedor deste Reino!

A sala, rendida, levantou-se e gritou arraial pelo novo rei, rei do povo alçado pela rua, em chusma e ruidosos correram ao paço onde nesse dia se encontrava e ali mesmo lhe conferiram a dignidade régia. O Reino ganhava um rei, o povo, um comandante, os sinos, ruidosos, repicaram em todas as igrejas. Satisfeito e muito saudado, João das Regras fora nesses dias pela palavra a espada da lei e a voz da razão. Atacado pela gota, em Lisboa, o velho Álvaro Pais, ausente de Coimbra, regozijava-se, orgulhoso do enteado e esperançoso no novo monarca. Por muito tempo ainda, e apesar de ainda irem falar as armas em Aljubarrota, o Reino de Portugal permaneceria em mãos portuguesas.

publicado por Fernando Morais Gomes às 01:05

22
Jul 11

“Senhor Director do Diário de Notícias. O meu nome é Eduardo Gralheiro, major de Lanceiros e leio na edição de hoje algo profundamente perturbador: no dia de ontem, 8 de Janeiro de 1902,quando seguia num coupé a caminho de Benfica o major Mouzinho de Albuquerque,  grande soldado e meu antigo comandante, pôs dramáticamente termo à vida. Cometeu suicídio o herói de Chaimite, perda irreparável para o Exército e para o Reino!. Recordo, senhor director, com saudade e orgulho aqueles dias, sete anos atrás, em que sob o seu comando vergámos o vátua  Gungunhana e como depois de aprisionado  o escoltei até Lisboa.

Ngungunhane. Filho de Muzila, neto do grande Manicusse, que à frente de um exército vindo das terras dos zulus fundou o Império de Gaza, submetendo duas centenas de tribos em torno do Limpopo, fundador da aldeia sagrada de Chaimite. Ngungunhane, o neto herdou-lhe a fibra guerreira, como a de Shaka, o grande chefe zulu. Intimado a assumir-se como súbdito de Portugal, mobilizou as suas forças,  grande foi o alarme em Lisboa, António Enes prometeu mesmo a D. Amélia trazer-lho aos pés. Em Janeiro de 1895, estando em Moçambique, avançámos para Marracuene, nas margens do Incomati e enfrentámo-los em Coolela, já em Novembro desse ano. As nossas Kropatscheck, que tinham substituído as velhas Snider, esmagaram os regimentos de Ngungunhane, apenas cinco dos nossos morreram contra as centenas de baixas entre os guerreiros de Gaza.

Soube-se que Ngungunhane acusou  os tios de traição pela ausência na frente de combate. A capital de Gaza, Manjacaze, ficava apenas a 7 km de Coolela. Estava aberto o caminho para a sua queda em nosso  poder. A 11 de Novembro de 1895,  com uma coluna militar comandada pelo coronel Galhardo, entrámos sem oposição em Manjacaze, o kraal estava abandonado e a população em fuga. Galhardo ordenou a pilhagem da povoação e o seu incêndio. Ngungunhane entretanto refugiara-se em Chaimite, junto à campa de seu avô Manukuse, o fundador do Império de Gaza, oferecendo-lhe sacrifícios humanos e aos antepassados em procura de protecçao.

Foi por essa altura que o nosso major Mouzinho foi nomeado governador de Gaza, a hora era a sua. Ngungunhane, pressentindo a derrota, ainda tentou entregar o príncipe ronga Zixaxa, que perseguido pelos nossos se acolhera sob a sua protecção, mas Mouzinho, a bordo da Capelo, mostrou-se-nos  encorajado pela onda de vassalagens que ia obtendo dos chefes tribais da região, e apontou o dia de Natal para a captura de Ngungunhane, seria acompanhado por mim,  um médico , 49 praças  e duas centenas de auxiliares africanos. Nos três dias de marcha forçada que se seguiram, juntámos vários régulos que se ofereceram para o combater, na retaguarda ficara  a canhoneira Capelo, em posição no Limpopo. Sabendo-se perseguido, Ngungunhane enviou emissários ao nosso major, com presentes e juras de amizade,libras de ouro, dentes de marfim, o próprio filho, Godide trouxe libras de ouro e uma manada de búfalos. Na madrugada de 28 de Dezembro de 1895, chegámos frente às paliçadas de Chaimite, pelas sete, Mouzinho resolveu entrar na aldeia por uma estreita abertura da cerca, por onde caberia apenas um homem, no que foi seguido por mim e pelos demais. Surpresos, os cerca de 300 guerreiros da manga Zinhone Muchope,  não esboçaram resistência, e fugiram.  Com Ngungunhane capturado e humilhado, o major ordenou o fuzilamento de Mahune e de Queto, tio do imperador, não contente, e verdadeiramente possesso, ainda mandou que o coração dos mortos fosse trespassado por uma espada. Pelas 10 h, estava terminada a destruição de Chaimite e a coluna partia de volta à Capelo levando os prisioneiros. O percurso iniciou-se às 10 horas da manhã de 28 de Dezembro de 1895, quando trazendo Ngungunhane e as sete mulheres escolhidas para o acompanhar, partimos de Chaimite. A comitiva integrava ainda Godide, o  herdeiro, e dois tios de Ngungunhane. Foi uma caminhada árdua, em marcha acelerada, durante a qual sempre que os prisioneiros caiam eram pontapeados e chingados. Chegámos a Zimacaze, onde nos aguardava a Capelo, na manhã de 29 de Dezembro.
Perante milhares de pessoas que se tinham juntado nas margens do rio, Ngungunhane foi arrastado, tal era o seu estado de inanição. Seguiram-se vivas ao rei de Portugal, e uma saudação de três bayetes, um grito que era levantado apenas perante ele, mas que Mouzinho obrigou a ser dado em honra do rei de Portugal. Também se entoou a canção Incuaia, uma saudação ao imperador que só podia ser cantada com sua autorização, agora  usada como insulto.

A partir daí sucederam-se as humilhações, com Ngungunhane a ser pontapeado quando, de joelhos, implorava clemência, e os interrogatórios, com o fito de descobrir onde estaria o famoso tesouro que se dizia ter escondido. Mouzinho anuía, sem clemência, era a justiça dos vencedores.

Em  Languene, embarcámos Matibejana de Zixaxa e algumas das suas mulheres, que nos havia sido entregue por Ngungunhane. Passaram a partilhar o cativeiro.

A 31 de Dezembro de 1895 chegámos à barra, onde o vapor Neves Ferreira, nos transportou para Lourenço Marques. Aí me despedi do major e não mais o tornei a ver. Em Lourenço Marques foram exibidos,a cidade  estava engalanada e em festa pela caçada.

Permaneceram na cadeia da cidade até 13 de Janeiro, dia em que, por ordem do Ministro da Marinha os embarcámos no vapor “África” com destino a Lisboa, só a 13 de Março arribámos a Lisboa. Em todas as escalas os prisioneiros foram postos a ferros, para evitar fugas.Fundeámos frente a Cacilhas. Sabendo-se da presença a bordo dos prisioneiros, logo o navio foi rodeado por dezenas de embarcações a remos e à vela no intento de ver o Gungunhana. Lisboa estava em festa, para ver os os prisioneiros num exíguo espaço mal iluminado com dois patamares de beliches. Nas esteiras superiores, Ngungunhane as suas mulheres. No beliche inferior Godide, o primogénito de Ngungunhane, o príncipe Zixaxa Matibejane e as suas três mulheres, Molungo, tio de Ngungunhane, e Gó, o cozinheiro. O cheiro era nauseabundo, Ngungunhane, exausto e horrorizado, receava o fuzilamento. Às três e meia da tarde desembarcámo-los no Arsenal, os enfeites das mulheres nativas despertaram a curiosidade, Godide tornou-se objecto de cobiça por parte das esposas dos funcionários, jovem, alto, falava, português, não estava assustado como o pai. Ao fim da tarde metemos o grupo em seis carruagens abertas, escoltadas por 30 praças de cavalaria, com destino ao Forte de Monsanto. Nas três primeiras iam as 10 mulheres, na quarta o cozinheiro Gó, a quinta levava as bagagens, algumas trouxas e às esteiras onde habitualmente dormiam. A carruagem com Ngungunhane, Godide, Matibejane e Molungo fechava o cortejo. Foi tal afluência de povo que, nalguns locais, o cortejo dificilmente avançava. Os ditos e as humilhações que os prisioneiros sofreram foram de tal monta que nos dias seguintes a imprensa protestou pela passividade da polícia.

Em Monsanto foram instalados nas casamatas do Forte, uma estrutura subterrânea húmida e fria. Fora do Forte, o clima era de festa, eram milhares as pessoas que em cada dia íam ao alto de Monsanto na esperança de avistar os prisioneiros, o que levou à instalação de barracas de comes-e-bebes,  um verdadeiro arraial popular.

Não tornei a ver o major Mouzinho depois de Moçambique, o rei deu-lhe outras atribuições e eu parti noutras missões. Voltei ao meu regimento, e só pelos jornais fui sabendo de Gungunhana e dos demais.Uma pleurisia levou Ngungunhane ao Hospital da Boa Hora, em Belém, foi bem tratado,instalado num quarto destinado a oficiais. Curou-se e voltou a Monsanto .Fora do Forte,os insultos aos prisioneiros eram constantes e diários, com os populares a fazer gestos de degolação cada vez que os avistavam na esplanada. O Governo tomou a decisão de os desterrar para a ilha Terceira, a bordo da canhoneira Zambeze, foi decidido   também separar as mulheres dos homens, para elas veio ordem de deportação para  São Tomé. Ngungunhane teve de ser novamente levado em braços para bordo do rebocador Voador que conduziu os prisioneiros à canhoneira, fundeada no Tejo. Chegaram à ilha Terceira a 27 de Junho de 1896 e foram instalados no Castelo de São João Baptista, na península do Monte Brasil, em Angra. Naquele local Ngungunhane permanece ainda, morto está hoje o seu captor.
Soube que há três anos foram baptizados na Sé pelo bispo de Angra, e de seguida crismados, recebendo como padrinhos os principais notáveis da ilha. São cristãos agora.

E Mouzinho? O major nunca perdoou a forma como o trataram, oscilando o herói e o facínora, na boca dos pasquins liberais de Lisboa.  Depois dos combates em Naguema, Mocutumudo e Macontene, partiu para Portugal, com o intuito de resolver questões relacionadas com a administração da colónia de Moçambique, viajou pela Europa, só em 1898 regressou a Moçambique sem levar qualquer resultado prático da sua presença na Metrópole.  Apenas em Julho de 1898, Mouzinho de Albuquerque recebeu  a notícia de que tinha sido concedido o tão esperado empréstimo à colónia. No entanto foi nesse mesmo dia afastado de Comissário Régio. Apesar de pomposamente ter sido  depois nomeado ajudante de campo do rei D. Carlos, oficial-mor da Casa Real e aio do príncipe D. Luís Felipe, Mouzinho, como Ngungunhane, sangrava, incompreendido pela Pátria!. Senhor director, morreu um herói de Lanceiros!. Sintra, 9 de Janeiro de 1902

Eduardo Gralheiro,  Major de  Lanceiros”

 

publicado por Fernando Morais Gomes às 22:25

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