Moço hábil de armas, filho de Estevão de Almargem, Vasco de Sintra oferecera-se para a armada de Albuquerque que partia para Socotorá a edificar fortaleza. Esperando domar o Mar Vermelho, transportando um forte de madeira para os trabalhos iniciais, Afonso de Albuquerque seguiria como capitão da costa arábica, até Moçambique sob ordens de Tristão da Cunha. Em segredo, levava carta com missão secreta do rei, substituir D. Francisco de Almeida, que terminaria como vice-rei dois anos depois. Vasco embarcava pela aventura, a Filipa, filha do alcaide de Sintra, deixava promessa de desposar quando em glória e ao lado de Albuquerque tornasse triunfal a Lisboa.
Em Abril de 1506 partiram as armadas, Afonso de Albuquerque pilotando o próprio navio, que o piloto desaparecera antes da partida. No canal de Moçambique cruzaram-se com João da Nova, vindo da Índia, aí invernava após rombo no Frol de la Mar. Resgataram-no e à nau, juntando-os à frota. Após bem sucedidos ataque a cidades da costa oriental, seguiram para Socotorá, onde havia notícia de cristãos, e a tomaram em Agosto de 1507, iniciando a construção da fortaleza. Em Socotorá os caminhos dos capitães separaram-se: Tristão da Cunha partiu para a Índia, em apoio aos portugueses de Cananor; Afonso de Albuquerque navegou com seis navios e quinhentos homens rumo à ilha de Ormuz, centro chave do comércio no oriente, no percurso, bélico, submetendo Curiate Mascate e Corfacão. Vasco de Sintra, valente, pelejava com desusada coragem na tomada de Kalhat e Soar, gloriosos,só em Setembro chegaram a Ormuz. Fruto de acordo com o rei local, de imediato Albuquerque iniciou a construção dum forte, sendo a primeira pedra colocada em Outubro. Temerários, homens de todas as condições participaram nos trabalhos, já herói de Mascate e atento a ataque inimigo, o jovem Vasco vigiava a frota, compenetrado e atento. Posta a contestação de alguns capitães, que reclamavam das duras condições, vários navios desertaram para a Índia, deixando Albuquerque furibundo. Com a frota reduzida a dois navios e sem mantimentos, o capitão-mor voltou a Socotorá, onde reencontrou a guarnição passando fome, para reabastecer o forte houve que assaltar navios mouros e a cidade de Kālhāt.
Vasco de Sintra, aventureiro, tudo ultrapassou com denodo: as monções e enjoos da Guiné, a pestilenta ameaça da morte, as saudades de Filipa, fiel amada suspirando na longínqua e verdejante Sintra. Regressaria heróico, tomadas terras da Índia, retornaria para casar. Nove meses após a partida, e chegados a Socotorá, se percebeu não ter rumo certo a viagem das seiscentas almas de alguns nobres e muitos maltrapilhos filados na ralé de Lisboa. Gonçalo Bernardes, mestre bombardeiro, foi inesperado amigo, jovem e voluntarioso, como Vasco. Do termo de Cheleiros, junto a Sintra, desde a Mina se revelara companheiro alegre, também ele deixara amada na Igreja Nova, aí assentaria no regresso da viagem.
A bordo, haviam fogões, situados no convés, um em cada lado do navio, de onde todos tinham de se servir: biscoito, enchidos, bolacha, vinho tinto, queijo, bacalhau, avelãs, nozes. Vasco, à partida sempre com apetite, no retorno a Socotorá começou a sofrer do estômago, pálido e combalido, os enjoos tornaram-se frequentes. Albuquerque torceu o nariz, mal de Angola, suspeitava, o cruel escorbuto pestilento rondava uma vítima mais. O padre Cristovão patrulhava, qual abutre, aconselhando salvífica confissão, em dias, a Índia era miragem pairando ao longe, no assento e pendurado da amurada, Vasco definhava sem forças. O amontoado de capoeiras, despensas, tonéis e canastros era pasto certo para a invasão de ratos, que, famintos,disputavam os alimentos, fenecendo a higiene a bordo, desordenada arca de Noé de animais, barris, fardos e passageiros, ora ao frio insuportável, ora ao calor abrasador e à chuva que açoitante inundava a embarcação. As condições periclitantes, a carência de frescos, a carne e peixe putrefactos, a falta de água e abrigos, tornavam a ansiada chegada ao paraíso cruel inferno e dolorosa provação, entregues a Deus e a um destino incerto. Febril, Vasco agonizava e lembrava Filipa, embalado pela pérfida dança das ondas. “Se os doentes tivessem mais água, não morreriam as 80 pessoas que nos morreram até agora, fora 26 que doentes ficaram em Moçambique” anotava Albuquerque no diário de bordo.
Da armada não constava um físico, por não se quererem gastar alguns cruzados em aprestos para a saúde, João da Barra, o barbeiro, sangrando uns e outros, fazia o que podia. Com os dias, Vasco, antes só indisposto, entrou em delírio, vexado numa enxerga de palha, febril e sem ingerir biscoito, a água antes milagrosa a tempos deixou de o saciar, a ele e mais quinze o padre Cristovão e o barbeiro davam ânimo, receosos e impotentes. Ao fim de quatro dias, as gengivas inflamaram-lhe e ficaram inchadas, apodrecendo rápido com um tremendo mau hálito, os dentes caíram todos, hemorragias nas mucosas e pele anteviam o pior, apesar dos viris dezanove anos, a morte rodopiava em torno a Vasco, qual bailado pestilento nas águas mornas do Índico, insensível às impotentes sangrias.
Nove dias de febres se passaram, já desfigurado, à vista tardia de Socotorá, Vasco de Sintra sem melhoras fechava os olhos, por dias não almejando aquela Índia misteriosa e opulenta, prometida terra de glória, agora ingloriamente distante, o derradeiro pensamento ficara em Sintra, onde Filipa, formosa e pura, choraria viúva de furtada vida, vencida pela cruel e misteriosa Índia, sinuosa Circe de novo Ulisses, onde para sempre as águas engoliriam o seu amado.
Aos vinte e cinco de Janeiro de 1508, à fúnebre lista de perdas que Albuquerque inscrevia no diário de bordo, acrescia aquele Vasco de Sintra, visionário jovem em busca de glória, colhido pelo escorbuto antes da acostagem à terra prometida. Envolto por Gonçalo Bernardes em tosca sarapilheira, o mar o albergaria, imenso, senhor, sob o olhar impenetrável do Albuquerque Terribil. Nesse dia e instante, do outro lado do mundo, premonitórias, as ondas da Ursa e Adraga uivaram, abafando lágrimas de incontáveis donzelas de Portugal. O Império gemia e chorava, mas, enterrados os mortos, seguiria indomável para a glória dos vivos, durante alguns séculos ainda intrépidos sulcadores do imenso oceano, familiar via láctea do Reino de Portugal.