por F. Morais Gomes

30
Ago 11

A funcionária da limpeza pasmava, no hemiciclo da Assembleia da República, nem oito da noite eram e um indivíduo, deputado por certo, dormia com a cabeça sobre a bancada, como não haveriam as pessoas de ter má opinião dos deputados. Olívia e a sua esfregona preparavam-se para limpar o local onde se lava toda a roupa suja, quando aquele vulto, cinquenta anos para aí, óculos de massa, lhe surgiu no areópago do povo.

Hesitando em o acordar, aproximou-se, era na bancada do Partido da Liberdade, o computador estava aberto na página do Facebook, uma mensagem recente dum tal Libertador rezava“Já pagaste pelos teus actos.Lol”.Visto mais de perto, o deputado parecia num sono profundo, branco como a cal da parede, já ninguém restava no hemiciclo, a sessão sobre o imposto para os ricos terminara inconclusiva pelas 18 horas.

A medo, Olívia tentou acordá-lo, ao que o corpo desgovernado do representante da Nação tombou no chão. Uma mancha de sangue brotando da camisa branca deixava à vista o horroroso cenário: o deputado estava morto!

Sirenes de ambulância e piquetes das televisões acorreram mal se espalhou o sucedido. Crime na Assembleia, relatavam uns, ajuste de contas, aventavam outros, Hélder Carneiro, deputado por Faro, estava ligado ao sector imobiliário, um condomínio de luxo em Vilamoura antes de ser candidato originara querelas na justiça entre os sócios, um dos quais ele. E o Libertador? Quem seria a enigmática figura?

O inspector Tomás, dos Homicídios tomou conta da ocorrência. Autopsiado, a causa da morte foi atribuída ao disparo de uma pistola com silenciador, em cheio no coração, a ultima pessoa a ver Carneiro com vida fora Vasco Trigoso, por sinal do Partido dos Valores, adversário político mas correligionário da caça, uma semana antes haviam estado numa batida ao javali em Vinhais. Nada fazia supor o ocorrido: deixava mulher e um filho, na assembleia apenas se levantara as vezes que o haviam mandado para votar as leis acordadas, jogava Farmville normalmente sempre que haviam plenários, apenas interrompido para aplaudir ou rematar com “muito bem!” as intervenções dos colegas de partido. Um pormenor chamou a atenção do inspector: sobre a mesa, num papel, a lápis, estava desenhado um flamingo, provavelmente da autoria do falecido, a morte deve tê-lo surpreendido quando faltava desenhar uma pata.

Nada fazia sentido. Na televisão, o Primeiro-Ministro e vários deputados recordavam o insigne cidadão e o muito que havia a esperar de tão loquaz parlamentar.

Nenhuma pista parecia esclarecer o móbil: não tinha inimigos declarados, a família era equilibrada, politicamente pardacento, nunca se ouviria falar dele não fora a infausta morte no seio da representação nacional.

No dia do funeral, muito concorrido, o inspector Tomás, discreto, observou todos os presentes: gente do Algarve, deputados de todos os partidos, e muito povo, sempre pronto a comparecer quando a televisão está por perto. Formado o cortejo fúnebre, uma carrinha branca com três homens dentro incorporou-se, era dum tal Hotel Flamingo, em Vilamoura, um animal semelhante ao do papel na carteira do deputado ornamentava a mesma.

Curioso, Tomás não mais a largou, depois do funeral parou no Gambrinus onde os três homens jantaram, falando baixo e num tom zangado, via pelo esbracejar dum deles. Com o telemóvel, tirou umas fotos e mandou averiguar as identidades, todos com mais de quarenta anos, um usava um laço preto, como se fosse um maestro. Dali seguiram para um hotel, onde outro homem os aguardava no lobby, detendo-se a conversar um pouco e subindo para os quartos depois. Mal se retiraram, Tomás  ligou a Eduardo, seu colaborador na PJ, que chegou e entrou no hotel,identificando-se pediu os nomes dos três, eram os donos do hotel, informou acabrunhado o recepcionista Daquele e de muitos outros, o Flamingo de Vilamoura igualmente. Havia gato ali, o seu feeling dizia-lhe, mas por enquanto pouco ou nada tinha de concreto.

Colhidas informações na Assembleia, o deputado Carneiro pouco reparo dera até então, integrava a comissão de inquérito ao BPN, como vogal, Felício Borges, correligionário da bancada lembrava-se de o ter ouvido certa vez alterado ao telefone a falar com um tal Loureiro, e a garantir que ou viria um flamingo ou seria pior para ele. Requisitado o historial de chamadas, efectivamente havia vários contactos entre ele e um tal Abel Loureiro, supostamente em S.Tomé e Príncipe desde o Natal. Perspicaz, teve uma ideia: adicionou sob nome falso o Libertador no Facebook e escreveu, sob o pseudónimo Albatroz: “Libertador, tenho o Flamingo comigo”. Do outro lado, ao fim de uns minutos, alguém escreveu “Quem és tu, Albatroz?”, a que se seguiu “O dono do milho. O pobre do Milhafre ficou pelo caminho mas o voo do Albatroz há-de prosseguir…”. Continuando a dar conversa, o Libertador perguntou: “E onde é o poleiro do Albatroz?”. Aí, Tomás lançou o isco: “Na casa do Flamingo para uma bebida. Às cinco”

Às cinco, no bar do Hotel Flamingo, Tomás, de fato e gravata, simulando um empresário da indústria hoteleira aguardava, com um gin tonic. Minutos depois, um dos que vira no hotel e estivera no funeral apareceu. Olhando de soslaio para os presentes, Tomás dirigiu-se-lhe, levando o desenho de Carneiro, do flamingo sem uma pata. Em silêncio, o outro cumprimentou, convidando para o sofá e mandou vir a garrafa, o empregado, reconhecendo o patrão voltou correndo, e com uns cajus. Era Macário Teles, industrial hoteleiro, do Algarve. O inspector Tomás prosseguiu na narrativa: era um industrial hoteleiro, queria investir no Algarve, e o grupo do Flamingo pareceu-lhe de referência. O nome da cadeia Flamingo fora-lhe sugerido pelo malogrado deputado Carneiro, que perda fora para o país. A invocação do nome do falecido deixou o interlocutor desconfiado e a tirar nabos da púcara:

-Conhecia o deputado Carneiro, senhor….

-Almeida. Almeida da Câmara. Sim, era amigo da família e tivemos negócios no passado. Grande fatalidade! Quem terá cometido um crime tão hediondo? E no sítio que foi…..

-Pois é, ainda custa a crer. Ele foi meu sócio há uns anos, em Armação de Pera, uns prédios de apartamentos, depois ele meteu-se na política e só acompanhei de longe...

O telefone de Tomás tocou nesse instante, era o Eduardo, da sede, com informações frescas, sorrindo, Tomás foi dando goles no gin enquanto Teles fumava um charuto. Terminado o telefonema, e mais incisivo, Tomás abordou o seu interlocutor:

-Diga-me, os senhores não fizeram esses apartamentos com dinheiro oriundo de tráfico de droga? E quando a sociedade se desfez não lhe ficou a dever dinheiro?

O outro ruboresceu, antes que dissesse algo, Tomás sacou da pistola e identificou-se:

-Tomás de Oliveira. PJ!

Sem reacção o outro deixou-se estar, retorquindo com alguma calma aparente:

-Não sei do que fala, inspector. Não via o Carneiro há anos, e se quer saber, até dei dinheiro para a campanha dele por Faro, através do partido. Quanto ao resto, são especulações, quero um advogado, se não se importa.

Tomás chamou a brigada, levando Macário para a PJ. Somados dois e dois, chamadas telefónicas comprovavam um conluio entre Teles e Loureiro, a partir de S.Tomé para se verem livre do deputado. Aproveitando-se do novo posto, chantageara Macário com uma queixa por fuga ao fisco, juntando documentos que provavam negociatas nos anos oitenta e das quais não recebera a sua parte. Na comissão do BPN, implicaria Loureiro, pois todo o projecto do Flamingo fora financiado pelo banco com dinheiro sujo branqueado em Gibraltar. Ao meter-se com quem não devia, pagava com a vida, o autor material, no hemiciclo, fora um pistoleiro contratado, um brasileiro, disfarçado de administrativo, que o alvejara quando levava a ordem do dia para o dia seguinte, já só ele restava na assembleia. Acabou por ser preso no Meco, enquanto tomava uma caipirinha. Teles, à distância, era o misterioso Libertador.

Presos os responsáveis, Tomás, regressando ao local do crime, a dar conta das conclusões, viu já no lugar do defunto o deputado que o substituíra: Porfírio Lopes, antigo negociante de carnes, ali para dar o corpo ao manifesto pelo partido, e se possível, por algum bife do lombo… Info-excluído, porém, não sabia usar o computador, nem tinha amigos no Facebook…

publicado por Fernando Morais Gomes às 15:52

28
Ago 11


"Um Glenffidich, com gelo. Em fundo, a dança dos espíritos abençoados, do Orfeu e Eurídice. É domingo, e cada vez mais Outono, saltado que foi o discreto verão, para quê sol nos corpos quando gelam as almas. Odeio os domingos. Dantes a família almoçava, depois da missa, em seus fatos domingueiros. Já não há fatos, nem famílias, nem missa. Saudades da infância, do passeio de barco ao Ginjal no fatinho à marujo, comer enguias e voltar no cacilheiro a visitar a avó que esperava com aquele bolo de noz e scones com geleia. Nunca mais comi bolo como esse, os sabores também têm passado, Rogério, e muitos deles sem futuro. E o rádio, com o relato da bola, como frenéticos pareciam os jogos, gritado cada canto como  antecedendo um enfarte.

É, o passado está todo ali. Na prateleira. Nos retratos em álbuns , arquivos mortos de vidas passadas. Cansei do Gluck, põe o Strauss, a valsa do esquiador, seja, encerra juventude e nostalgia, só por isso outro Glenfiddich, raios partam o Famous Grouse. Engraçado. Nunca estive nesse passado, com valsas e palácios,mas também ele é passado do meu passado. Cliché. Bonito. É sempre bonito falar do passado, por nostalgia ou arrependimento. Tem uma vantagem: ao menos tem-se passado. E apaga a televisão, chega de electrodomésticos, por hoje!

Não mexe uma palha lá fora, sabes, mas dentro, corre um vento intranquilo. Que presente recordaremos daqui a vinte anos como bom passado? Os copos que se beberam? A infância dos filhos, ingénuos e puros, azul ou rosa como os fatinhos em que os envolvemos à nascença?

Queria ouvir o Morrison, mas estou intemporal, apetece-me o salão, hoje. Põe aí a Annen, Rogério, sim, a polka 117 de Strauss, grande música para um slideshow de vida feliz e realizada. Para os infelizes, antes Philip Glass ou Bartok, eu quero evadir-me, quero Glenffidich!!, aumenta o som, diz à vizinha que enlouqueci, que o som é a conselho médico!

Engraçado, Rogério, sinto-me um pássaro em melodia de Dvorák, ainda bem que o domingo acabou. Naquele tempo não importavam os domingos, todos os dias eram de Vida, sem separar por semanas, décadas, gerações.

Amanhã será segunda. Monday. Dia da Lua. Na Serra da Lua, curioso. Olha, esconde a garrafa de Glenffidich e diz ao mundo- ou pelo menos ao caseiro- que Arnaldo da Nóbrega desistiu de viver. Só ouvia vinis e num mundo onde não há pontas de diamante, riscou-se da lista de convidados. Que partiu, ao som de Annen, levando os livros, os sonhos, o perfume de Sofia e muitos passeios ao Ginjal por fazer e bolos de noz da avó por comer. Auf Wierdersehn! É forte, o adeus em alemão,seguro e sem lamechas. Rogerio! Maldito boneco de porcelana, se não fosse a tia Zita já te tinha esfrangalhado, degenerado!

Arnaldo da Nóbrega

Vendedor de Insónias"

publicado por Fernando Morais Gomes às 22:22

27
Ago 11


No plateau do Quivuvi, apertada cave contígua ao Bibió, 1988 chegava ao fim e velhos amigos reencontravam-se para mais um copo de sábado, as habituais cuba libre ou cervejas até por volta das seis, quando a manhã raiasse e, providencial, o João Padeiro em Nafarros vendesse uns pães quentes, se possível com chouriço, a amenizar a ressaca de domingo. Não se iria à missa, mas as capelas tinham sido corridas. Desta vez, amigos teriam um momento decisivo, na manhã seguinte.

Margarida, 20 anos, aluna de Letras, desde o Verão que se envolvera com Bernardo, paixão de férias que contudo prosseguiu no Outono e já de volta a Lisboa, em idas ao Nimas ou ao sábado no Charlie Brown, com amigos, sempre que ele podia ir ter a Lisboa. Fora ao som de Lover Why, dos Century que sob a bola de espelhos do Quivuvi deram o primeiro beijo, foi o princípio  dum verão palpitante, a Filipa e a Guida, amigas das noites apadrinhavam. Bernardo não seguira a faculdade, trabalhava como empregado de mesa em Sintra, montado na motorizada, era o “gato” por que Margarida sonhava, sósia do Charlie Sheen, que todas as miúdas queriam. Cena de uma noite, repetiu-se nos sábados seguintes, quando o Verão acabou e voltou a Lisboa, Margarida inventou entrevistas para um emprego em Sintra para idas frequentes até ele, preso pelos horários do emprego, e encontros na Adega das Caves, perto do restaurante onde trabalhava, na Vila Velha.

Pelo Natal, a fisiologia deu sinal de vida. Suspeição, primeiro, certeza depois. Margarida estava grávida. Uma alegria imensa, logo seguida do medo dos pais apoderou-se dela. O doutor Armando e a D.Georgina eram de famílias tradicionais, futura professora, seria um choque, a filha grávida, solteira, e para mais dum empregado de mesa. Apesar de Abril, as mentes não estavam tão abertas assim, e Bernardo ao saber, limitou-se a censurá-la, incauto, também ele não tomara providências, mas homem é homem, apesar das recentes notícias sobre uma nova doença, a SIDA e de envergonhadas campanhas, o impulso vencera a segurança. Aborto, nem pensar, a D.Georgina era católica, e filha dela alguma vez faria um desmancho, severo, o doutor Armando mandou-os chamar, de Lisboa fora até à praia para falar com eles, irresponsáveis. Seria na manhã seguinte.

Encontraram-se pois no Quivuvi, com amigos, o Natal estava próximo e o espaço a meio gás, debitando músicas dos Cheap Trick, Soft Cell e Whigfield, sentados a um canto, apreensivos, cogitavam no melhor a fazer. Passada a surpresa, Bernardo até anuiu a ter o filho, o pior era o preconceito social, o doutor Armando e os Vasconcelos de Alencar todos, olhando-o, inquisitoriais e condenando-o ao desterro social. A barriga de Margarida, ainda pequena, começava a ganhar forma, quatro meses quase, qualquer aborto seria arriscado. Tocada uma musica dos Delfins, precipitaram-se para a pista, de mão dada. Quando alguém nasce, nasce selvagem, cantaria Miguel Ângelo mais tarde, selvagem nasceria, se necessário fosse, aquele fruto duma noite na Adraga. Os amigos apoiavam, tudo correria pelo melhor, despediram-se nessa noite com um brinde solidário, no dia seguinte decidiriam o futuro, ter a criança ou fugir, para Margarida não havia outra saída. Despediram-se à porta dela, Guida deixara-a em casa e levaria Bernardo até ao Penedo, um beijo apaixonado e sofrido coincidia com a última emissão da Rádio Cidade, rádio pirata nesse dia suspensa por falta de licença, também ela voz de liberdade e igualmente coarctada por regras insanas.

O doutor Armando era director de serviços na Câmara de Lisboa. Assoberbado em trabalho desde que em Agosto ardera o Chiado, braço direito do presidente Abecassis, seria candidato na eleição seguinte, escândalos destes não vinham nada a calhar, para mais entre o seu eleitorado, do Restelo e da Lapa. Bernardo apareceu pelas 10h, hora acertada, em vez da motorizada a Guida, amiga, deixou-o à porta, camisa lavada, o penteado irreverente que tanta miúda levara dava-lhe um toque desafiador, não fosse a bandeja e a farda no restaurante e até passaria por um deles, ar altivo, olho azul. Sem grandes sorrisos, Armando mandou-o sentar no sofá da biblioteca, a mulher e a filha num sofá do lado oposto, grave, puxou o assunto:

-Rapaz, lamentavelmente vejo que apesar da idade, ainda não ganharam juízo nesse corpo. Eu, na tua idade, já era pai da Margarida, mas tudo aos olhos de Deus e como manda o figurino, só assim se pode ser um chefe de família respeitado e um exemplo para os filhos. Já mediste bem a gravidade dos teus actos? Se quisesse nunca mais tinhas emprego em lado nenhum!

-Doutor Armando, eu….

-Nem mais uma palavra. A minha filha terá essa criança, nesta família não se contraria a vontade de Deus, mas tens de assinar um papel a renunciar à paternidade e jurar-me que nunca mais te aproximas da Margarida!

-Pai!- Margarida insurgiu-se- pai, já não estamos no século XIX. Eu amo o Bernardo, e não vou deixar de o ver. Nós vamos casar!

-Vamos?...- Bernardo perdia o controlo dos acontecimentos, aceitara o filho, gostava de Margarida, mas sem dinheiro ou casa aquela novela ainda não tinha verba para ser realizada. Dum ápice, teve uma reacção:

-Doutor Armando, eu amo a sua filha, e vou arranjar um emprego para poder casar com ela, creia-me. Também simpatizo com o seu partido, andei a colar cartazes em Cascais nas últimas legislativas

Armando Alencar fez uma cara de espanto, e quis saber mais:

-Sim?...

-Sim, doutor Armando. Portugal tem de ser governado por um governo liberal e acabar com o regabofe esquerdista que quase ia dando cabo do nosso país. Aprecio muito o seu trabalho!

Margarida e os pais calavam, surpresos. Após uns segundos, Armando mandou-o embora, e que voltasse em três dias, à porta, as mãos dadas, cúmplices, deixavam em aberto o desfecho daquela tempestade em copo de água.

No dia acordado, mais distendido, Armando colocou uma solução sobre a mesa: arranjara um lugar a Bernardo no Gabinete da Juventude da Câmara, a começar de imediato, se estivessem todos de acordo casariam em Colares no mês seguinte, na quinta do Zoio, enquanto a barriga mantivesse o segredo. Depois se arranjaria algo. Assim, todos ficariam contentes. No fim da reunião, um abraço correligionário juntava sogro e genro em recente amizade. Afinal, também Georgina casara de esperanças, haveria de descobrir Margarida anos depois.

Três anos mais tarde, o jovem assessor do vereador Alencar, e seu genro, por sinal, jantava no Búzio com a família, a pequena Matilde, já andando, tocava os aquários com as lagostas, divertida. Velhos amigos a caminho dum copo no Quivuvi, vendo-os pela vidraça, cumprimentaram, convidando para um copo no velho disco, não mais haviam lá voltado, depois do casório. Pais, e com responsabilidades, declinaram, nostálgicos entreolhando-se, dando as mãos por baixo da mesa, não deixaram de recordar aquele Lover Why que numa noite de Verão lhes mudara a vida. Oportunamente.

publicado por Fernando Morais Gomes às 14:07

26
Ago 11

O aspecto desolador do parque de campismo da Praia Grande não deixava dúvidas: antes um agradável espaço junto à praia, era agora um imenso matagal, grafitado e ao abandono, aguardando que o proprietário, apesar de prometer reabri-lo como parque, consiga uma cobiçada licença para aí construir prédios, assim cumprindo o slogan “Um Cacém até ao mar”.

Ricardo regularmente fazia passeios a pé, ora começando na Adraga e calcorreando a falésia até às Maçãs, aí  terminando com um martini no Loureiro, ora fazendo o pinhal por dentro, a ver da construção de casas novas ou do desbaste de mais árvores, sempre ruidosamente saudado por  matilhas de rotweilers que fazem do pinhal um sítio menos seguro que as Galinheiras.

Iniciado o passeio matinal na Senhora da Ponte, e parando uns minutos no horto a ver plantas para o jardim, um restolhar na folhagem pareceu denunciar a presença de animal dentro do recinto vedado do antigo parque de campismo. Algum rato ou lagarto, pensou, a acumulação de detritos só tais campistas tinha condições de albergar, que a promessa de um parque de campismo de 4 estrelas consignada no plano do parque natural por certo nunca passaria do papel. Continuou a caminho da praia, saudado por um sol matinal que finalmente pressagiava o Verão, quando novo ruído, abrupto, surgiu do interior do parque, a vegetação densa junto à rede pouco deixava descortinar. Como a curiosidade matou o gato e Ricardo tinha curiosidade felina, aproximou-se da rede e tentou ver o que seria, as portas há meses que estavam encerradas e nem para capinar as ervas ali alguém ia, transformado em reserva de endémico lixo e construções em ruínas onde até trogloditas desdenhariam viver, a promessa de roulottes modernas e coloridas tendas sempre no horizonte, mas sempre de concretização vaga, enquanto avaro for em mais-valias.

Ao restolhar entre as folhas e no imenso coberto vegetal, conseguiu identificar o som de animais, após uns segundos atento, um estranho e inusitado balir revelou a presença de ovelha ou cabra, intervalado, mas real, seria uma ou mais, que após cinco minutos de persistência finalmente descortinou, duas cabras, brancas, duma espécie desconhecida por ali, pelo menos daquilo que era a sua experiência de cabras. A porta do parque continuava fechada e as cabras pastavam, descontraídas. Acompanhando-as com o olhar, não foi difícil vê-las dirigindo-se para local mais afastado, onde, discretos, dois ou três indivíduos descarregavam móveis de um camião a caminho de uma tenda, grande, da qual só distinguia a parte superior. Curiosamente, um enorme plasma foi levado igualmente, luxo de campista, ignorando porquê para ali, no meio do lixo e com tantos parques mais bem tratados, fora de Sintra, infelizmente.

Contornando o parque pelo lado que conduz à Praia das Maçãs, Ricardo, já desinteressado do passeio matinal, descobriu uma brecha de acesso, e, qual detective de fim-de-semana, procurou averiguar o que ali se passava, ouvira relatos de cultos satânicos na serra, os roubos na zona podiam explicar o plasma levado para a tenda grande. Aproximando-se devagar, duas mulheres, uniformizadas de verde e armadas com pistolas conversavam à porta da tenda, enorme, maior que as usadas pelo Exército em manobras ou semanas de campo, as cabras eram afinal doze. Três homens continuavam a descarregar um camião, uma cama grande com colchão de água, sofás, até um espelho de Veneza, ocorreu-lhe que poderia ser algum exterior para um filme, a zona de Sintra era frequentemente usada como cenário de produções internacionais, talvez fosse o caso. Eram dez da manhã quando inesperadamente os homens interromperam a descarga e, juntando-se-lhes outros quatro vindos do interior da tenda, todos se descalçaram e ajoelharam em cima dum tapete, no que parecia ser uma reza. Árabes, deduziu, era a hora de uma das cinco orações diárias, a orientação na direcção da Pena deu a Ricardo a noção do lado para onde ficava Meca afinal.

Alguns minutos passados, voltaram ao trabalho. Um dos que viera de dentro, era chamado por uma das mulheres armadas, o outro, agarrado a um telemóvel, arengava, a distância à estrada e a vegetação não permitiam que ninguém se apercebesse das estranhas movimentações. O camião tinha matrícula portuguesa, e num momento de distracção, quando os homens da descarga saíram, para almoçar por certo, aproximou-se do vidro, no interior do veículo apenas jornais, e um ticket de entrada no porto de Portimão, por via marítima. Em letras pequenas, na lona do camião, o nome de uma empresa de mármores de Pêro Pinheiro, por sinal conhecida, nos anos noventa trabalhara muito para o Iraque e outros países árabes, era português o mármore de muitos palácios aí edificados.

O ruído das mulheres armadas vindas da tenda precipitou-o para uma moita, só uma das cabras, mais atenta se terá apercebido da presença de Ricardo, continuando contudo a ruminar no urze, por pouco não engolindo uma sandália ali deixada por campistas selvagens. As quatro precediam a aproximação ao exterior de uma figura que até ali ainda não vira, um homem alto com óculos escuros, vestindo uma túnica acastanhada e com um turbante negro. As mulheres, de aspecto escurecido, núbio ou sudanês, pareceu-lhe, por já ter visto na televisão figuras similares, pareciam atentas a tudo, enquanto o homem mirava a serra e o mar ao longe, gritando-lhes de quando em quando umas palavras imperceptíveis. A um sinal, uma alcançou-lhe uma taça com um líquido, parecia leite, das cabras, talvez, que ele bebeu dum só trago, arremessando-a fora depois, e voltando para o interior, um dos homens da reza logo atrás dele, transportando um volume, pelo aspecto parecia um telefone satélite.

Com a excitação o passeio ficou adiado entretanto e Ricardo decidiu voltar para casa, noutra ocasião passaria para ver o que sucederia. Amigo do Martins, o dono do parque, haveria de tirar nabos da púcara, talvez o tivesse vendido a uns árabes, ou emprestado para filmagens, já nos anos oitenta Wim Wenders filmara na Praia Grande, ganhando um leão em Veneza, seria algo do tipo, por certo, os custos de produção e a luz natural recomendavam Portugal para set de muitas produções.

Voltando pela Praia das Maçãs, pausa para um favaios no Loureiro, após o mau tempo inicial de Agosto dias de sol despontavam agora, tardios para muitos já, de regresso de férias e roubados do bronze habitual, até isso a troika levara. Na televisão, uma vitória do Sporting, finalmente, animava o espírito de leão, o imposto para os ricos, a par das inventonas do ministro Relvas, preenchiam o noticiário, típico de silly season. Na Líbia, o Conselho Nacional de Transição anunciava para breve a captura de Khadafi, alguns relatos desencontrados indicavam porém que poderia ter fugido num cargueiro e desembarcado nalgum porto do Mediterrâneo, até Portugal, embora improvável, não estava descartado como destino.

No abandonado parque de campismo, também o homem da túnica castanha via as notícias na Al-Jazeera, e prometia voltar a acampar em tendas melhor localizadas, só a custo os homens lhe arranjavam tâmaras decentes no Continente do Cascaishopping e eram incomodativas, as melgas. Aguardaria, por enquanto, orientado para Meca.


publicado por Fernando Morais Gomes às 12:27

23
Ago 11

Toda a noite levara emborcando vodkas pretas, férias sem mulher e filhos, na noite algarvia, só sabia onde começar, nunca onde acabaria. Apesar da crise, as praias estavam cheias, tirando uns dias de folga do escritório, Vítor alugou um bungalow na Manta Rota e instalou-se para uns dias sem jornais e sem net, no remanso das cadeiras de praia e dos bares ao fim da tarde. Num deles conheceu Craig, um polícia da Irlanda do Norte, que devidamente afogado em Guiness ia contando as vezes que insurgentes de Belfast o tentaram matar, com ele bebia copos  na happy hour. Outras aves raras pululavam pelas ruelas e esplanadas, numa parafernália estival: emigrantes com charutos pedindo champanhe francês, ostentando o sucesso aos patrícios, ganho nas betoneiras do Luxemburgo; crianças embirrantes com crocodilos insufláveis e baldes de areia; famílias da margem sul, e de outras margens, abastecendo nos mini-mercados; ingleses pouco sóbrios e holandeses menos sóbrios ainda, toda a fauna, enfim, exótica ou rafeira, da grande reserva turística a que hoje pomposamente chamam o Allgarve.

Vítor gostava de praia e de mar, viajante inveterado, das Caraíbas aos mares do Sul,  tudo sulcara já, vira peixes exóticos e corais coloridos, golfinhos brincalhões e cardumes voadores, pinguins e lontras, e mar, muito, verde, azul-turquesa, imenso e belo. Uma coisa o apavorava porém:  tubarões. As imagens do filme de Spielberg com trinta anos já, assaltavam-no sempre que chegava perto da água, coisa ridícula, mas assim era, acontecia o mesmo com os aviões, palmilhara milhas, adorava viajar, mas detestando voar, sempre temendo acidentes. O dr. Rebelo dissera-lhe ser irracional, conhecido como selachofobia, ter medo de tubarões, como outros têm de ratos ou aranhas. Hipnoterapia, terapia comportamental ou medicamentação, seriam os tratamentos adequados, aconselhara. Passado o verão, o medo sumiria, só ressurgindo com o regresso às praias, as portuguesas apesar de tudo seguras, e livres desse tipo de perigos.

Na Manta Rota, diariamente esticada a toalha e passado o creme, umas braçadas nas águas cálidas mais não deixavam ver senão algas ou seixos, indo e vindo. Baleias, sim, muitas, as que nem as dietas de verão eliminaram, tubarões, só os da troika ou dos mercados, a esses muitas vezes vira a barbatana, na costa e na algibeira, vorazes e trituradores. Filipe, também advogado e colega do escritório, em férias com a mulher na mesma zona, sabedor da fobia, gozava com Vítor, gritando ter avistado um tubarão sempre que ele ia ao banho, ao que ele inicialmente reagia assustado, e sorrindo depois, aliviado mas cauteloso, a verdade é que efectivamente ninguém vira nenhum por perto, nem Vítor se afastava muito de terra firme. Aliás, a bem ver, nem o tubarão que aterrorizara a ilha de Amity no filme de Spielberg existira, o aterrador animal com 5 metros e 2.000 quilos, que irrompia predador pelo barco dos três amigos ou nas praias da costa leste e que tanto o angustiava, escutando a música que culminava em ataque destruidor. Vítor, autoflagelando-se, vira o filme várias vezes, apavorado com aqueles olhos negros sem vida, o ronco abafado, sempre que as imensas mandíbulas se cravavam na vítima, puxando-a para a água e deixando uma mancha de sangue em volta. Mas esse era um tubarão branco, nunca visto nas costas portuguesas, só o vira, artificial, nos estúdios da Universal em Los Angeles como atração para os turistas, lembrava-se de na altura ter fugido a nove para o espectáculo do E.T. e  tal como ele, na bicicleta, ter tido o impulso de gritar “home…” a caminho dos céus.

No último sábado de férias, como habitualmente, Vítor, Filipe e a mulher, Rute, encontraram-se sob o toldo alugado na praia, uma bica no café dos pescadores, antes, dispunha para uma manhã de sol, que finalmente rompera, depois da trovoada da véspera, e para a leitura do Expresso na diagonal. Domingo seria o último dia, depois de noitadas no Bliss e Kadoc e dos copos em Albufeira, fariam um ultimo jantar no Zé do Peixe Assado, antes do regresso à crise e aos empates do Sporting. Vítor, cansado da noite anterior, deixou-se ficar espojado, roncando mesmo, mal os primeiros raios de sol lhe açoitaram as costas, ao fim de dez minutos. Filipe e Rute foram experimentar a água e mergulhar. Ao fundo, miúdos faziam fila para o parapente, três deles adornavam já os céus azuis da Manta Rota, um dia mais de dolce fare niente em perspectiva. Cinco minutos não eram decorridos quando uma algazarra junto à água e um magote de gente subitamente reunido denunciava ter ocorrido algo, a chegada dum barco de pesca, pensou Vítor, sem abrir os olhos na toalha, um bando de gaivotas anunciava  peixe na zona, todos os dias por essa hora chegavam barcos da faina, com safios, douradas e sardinha, bastante, e gorda agora. Um grito de mulher, gutural, fê-lo enfim despertar e levantar da toalha a ver o que se passava, o grupo de banhistas era agora maior e alguns apontavam na direcção do horizonte, para poente. Rasgando caminho entre eles, Vítor deu com Rute aos gritos, com a mão na cabeça, ao lado, meio sem sentidos, Filipe, deitado na areia. Uma poça avermelhada jorrava-lhe da perna esquerda, à aproximação, a visão horrorosa do pé esquerdo decepado, colhido por objecto cortante, o motor de algum dos barcos, alvitrava o nadador-salvador.

-Que se passou, Rute?  Que houve com o Filipe? Já chamaram o INEM?

Filipe dava gritos e chorava, sem um pé, a água salgada acentuava a dor. O vendedor de bolacha americana, um brasileiro bronzeado, vira-o entrar na água e nadar, despreocupado,para ele nenhum barco passara perto sequer, era estranho o sucedido. Já as sirenes do INEM anunciavam a chegada da ambulância para o evacuar, quase sem sentidos, quando um miúdo com uma boia, para aí com doze anos, apontou para o mar e desatou aos gritos:

-Tubarão! Há um tubarão na praia! Olhem ali!

Todos os olhos se viraram para o sítio indicado, e sinuosa, lá estava uma barbatana preta, a duzentos metros da praia. O pânico foi geral, com várias mães com os filhos pela mão fugindo para os lados da amurada e para zona segura, deixando Rute e Filipe quase sós. O nadador salvador pasmava, nunca tal vira na Manta Rota, a Polícia Marítima, via rádio, confirmava, um navio de guerra ao largo avistara não um, mas três tubarões, algo que os biólogos consideravam raro e sinal de alterações nas migrações da espécie nesta parte do Atlântico, bom sinal até, sintoma de peixe com fartura.

Vítor ficou estarrecido, e branco como a cal da parede, atarantado entre esperar pela evacuação do amigo, que dele zombara, e a fuga pura e simples, em areia firme, aguentou, quase desmaiando, e acompanhou Rute na ambulância. Ao fundo, a perturbante barbatana do inesperado turista marinho serpenteando, aproveitando algum pacote low cost no Algarve, transportou-o para o filme de Spielberg, o que sempre temera acontecia agora. A praia foi de imediato interditada e mirones com binóculos, desde o calçadão, avistavam já uma dúzia deles, garantiam, tudo o que mexia, a televisão chegava para um directo, e o correspondente do Correio da Manhã ganhava uma primeira página, destronando a velha assaltada no Pingo Doce da Amora.

Prometendo não mais voltar à praia senão para piscinas, Vítor, após a evacuação de Filipe para Lisboa, regressou também, findas as férias, para o amigo de forma dramática. Com o tempo, uma prótese ajudaria Filipe a andar, vítima do atípico Verão de 2011 e dum ataque de beachjacking. Ao chegar a casa, findas as férias, sem comida em casa, optou pelo restaurante chinês ao fundo da rua, um placard à entrada aconselhava uma ementa completa por sete euros, a começar com hóstias e  sopa de barbatana de tubarão…

publicado por Fernando Morais Gomes às 15:32

22
Ago 11

Alto, forte, musculado, não se ficava indiferente a Reinaldo Barros. Segundo sargento do Exército, antigo ranger em Lamego, em 2008 oferecera-se para seis meses no Afeganistão. Nunca esqueceria a manhã da partida em Figo Maduro, a Marília com a Inês ao colo, orgulhosas e com receio ao mesmo tempo, o barulho do C-130 em fundo. Logo à chegada a Cabul, a notícia de dezanove franceses mortos numa emboscada, a sua companhia ficaria destacada nos arredores da capital, uma babel onde o odor a morte se misturava com o cheiro a ópio. Cabul era anárquica, sem placas indicando os nomes das ruas ou os número das portas, letreiros publicitários ou toldos, apenas buracos e pó, e grupos armados, Kalashnikovs por todo o lado. Sem muito que fazer, passava o tempo em Camp Warehouse, o quartel dos portugueses da IFOR, onde à noite ruidosos italianos soltavam o calor da grappa cantando pelas casernas.

Naquela altura já os taliban mostravam sinais de reorganização, e no aquartelamento as ordens eram quase sempre de prevenção, os poucos momentos de descontracção preenchidos com o snooker e o Messenger, onde diariamente procurava notícias e fotos de casa e da pequena Inês.

Três meses e várias patrulhas depois, certo dia saiu em missão no centro da cidade, com o cabo Henriques e dois soldados, patrulhando uma paisagem povoada de Toyotas em segunda mão, ruidosos pashtuns, panziris e hazaras,  mulheres com e sem burka e a habitual parafernália de camiões kitch e extravagantes. Desgovernado, um carro velho azul irrompeu pela rua do mercado, cheia de gente, e num ápice galinhas esvoaçaram esganiçadas rua fora, seguindo-se uma explosão junto ao Ministério da Justiça, tudo muito rápido. A cabeça despedaçada dum pashtun caiu-lhe em cima, separada do kameez e atarantado da surpresa, deu em disparar, não sabendo para bem quem. O Henriques, caído, sangrava da perna, e só segundos depois reparou que a tinha ensanguentada, não demorou a desmaiar, enfraquecido. Fumo negro escurecia o ar e por toda a rua jaziam corpos, além do condutor do carro suicida, do ministério poucos vidros se aguentaram.

Acordou numa cama do hospital americano, uma enfermeira ainda nova sorria, serena. Tinham passado dois dias. Fora evacuado pelos americanos mas os danos eram irreversíveis, as pernas não puderam ser salvas. Sentiu o mundo desabar-lhe em cima, a cabeça do afegão despegada do corpo, a rir, aparecia-lhe sistematicamente à noite, o Henriques, com sequelas graves, acabou por falecer.

Duas semanas depois, foi evacuado para Lisboa. O C-130 que levara o garboso ranger trazia de volta um homem mutilado, traumatizado, com uma cabeça sem corpo sempre pairando como num pesadelo.

Afastado da vida militar, passou a preencher os dias no café do Dino, em Rio de Mouro, afogando os dias em amêndoas amargas, acometido de suores frios sempre que um carro parava perto, certa vez em pânico chegou mesmo a agarrar a pequena Inês contra o peito, e fechar os olhos à espera duma explosão, que depois, tranquilizado, verificou ser apenas o barulho das paletes da cerveja descarregadas para o café do lado. E aquela cadeira de rodas, símbolo de humilhação, que como antigo futebolista e campeão de torneios militares não suportava. À noite, com suores frios, não dormia, Marília agarrava-o, acariciando-lhe a face, paciente, aguardando o passar do torpor. Quando o telejornal noticiava escaramuças no Afeganistão, fixava o ecrã hipnotizado, lembrando Cabul, os pashtuns, a cabeça…

Com o tempo Marília começou a ficar cansada, Reinaldo não ajudava, reagia com violência a qualquer comentário que insinuasse a sua diminuição física, sempre bêbedo, o Ricardo, amigo de Lamego e colocado na Carregueira aparecia no bar do Dino e levava-o ao colo para casa. O corpo atlético de outrora começava a dar lugar a uma barriga protuberante pelo sedentarismo e o álcool.Certo dia, tentou ir para casa sozínho, teimoso e já ébrio, caiu pela escada enrolado na cadeira de rodas. Foi a gota de água. A Marília cansou-se, saiu com a Inês para casa da mãe, adensando ainda mais o declínio na sua já diminuída auto-estima. Ficou só, ocorreu-lhe o suicídio.

Passadas umas semanas, deslocando-se guiando a cadeira perto duma escola, deteve-se observando por uma vedação uns miúdos que alegremente jogavam futebol no recreio, interessado, deu consigo a falar sozinho e a conceber tácticas.-Passa, passa, marca o da frente, isso, isso…

Alguém a seu lado, achando piada, aproximou-se metendo conversa:

-Já vi que  aqui o amigo percebe de futebol…

-Coisas doutro tempo, cheguei a treinar uma equipa em Lamego, no Exército. Reinaldo Barros, já agora -estendeu a mão e cumprimentou o homem, um tipo de óculos de massa, aparentando quarenta anos.

-Rafael Caldeira, presidente do conselho executivo desta escola. Diga-me, já alguma vez pensou em treinar miúdos?

Surpreendido, abanou a cabeça:

-Está a ver o meu estado, não está….

-Não precisa de dar aulas de ginástica, nem cuidar da parte física, temos connosco bons professores, seria uma espécie de treinador teórico, para estudar as tácticas, está a ver, os miúdos ficariam entusiasmados, estou certo. Fazemos o seguinte: você fica aqui com o meu telefone e se mudar de ideias, apite -retorquiu, escrevendo o número num cartão de visita. Raramente me engano acerca duma pessoa, acredite!

Reinaldo matutou dois dias, de longe voltou a espreitar pela vedação os miúdos que corriam, contentes, na flor da idade, fazendo fintas, virtual selecção de sub-10. Decidiu-se e aceitou.

Apesar da cadeira, Reinaldo tinha chama e carisma e os miúdos ganharam empatia com ele. Criaram uma equipa unida, ganharam jogos, treinavam ao fim de tarde, no final dos treinos alguns levavam-no mesmo a casa, transportando a cadeira até ao segundo andar.

Motivado, deixou de beber, no café do Dino só o cafezinho da manhã. Um dia esperou Marília com um ramo de rosas à porta do emprego, e perdoando, voltaram a viver juntos, a Inês recuperou o sorriso, agarrada aos dois e ao peluche voltaram a passear juntos aos domingos no jardim. Aos poucos, a cabeça do afegão e as ruas poeirentas de Cabul foram-se dissipando e tornando difusas, confiante, voltava a marcar golos na baliza da vida.

publicado por Fernando Morais Gomes às 23:34

02
Ago 11

 

Por uns dias, vou suspender os posts, quer aqui, quer no meu outro blogue, O Reino de Klingsor. Não que não continue a escrever nestes dias,  sempre que me der na gana, e onde quer que esteja, mas para refrescar as ideias, mais de 285 histórias depois de quase ininterruptamente aqui vir partilhar noites de abençoadas insónias desde 16 de Setembro de 2010. Ameaço voltar! Um abraço a todos os amigos e amigas que me lêm, só espero ajudá-los a passar o tempo enquanto tomam o café, de manhã, à tarde, ou à noite, durante seis ou sete descartáveis minutos. Até já, desde este lado do ecrã. Deixo-vos com Ennio Morricone e a relaxante banda sonora de "A Missão", de Roland Joffé, um dos meus filmes favoritos.


publicado por Fernando Morais Gomes às 13:52

01
Ago 11

Entusiasmada, Elisa Valadares desembarcava em Nova Iorque, decidida a procurar respostas para o enigma do velho diário. Em 1620, Antão Valadares, seu antepassado, senhor de Colares e acusado de heresia pelos Melo e Castro, aristocratas locais, tivera de fugir para Inglaterra, em Plymouth embarcou no Mayflower com destino a Cape Cod, Massachussets. Aí viveu cinco anos até se mudar para Nova Amesterdão, hoje Nova Iorque, onde montou negócio de ourives. Ao morrer, em 1651, deixou um grosso diário onde misteriosamente escreveu na última página: "tudo o que deixo jaz perto da Imaginação”.

Depois da independência americana e avessos aos yankees, os descendentes de Antão voltaram a Portugal, levando o diário, o próspero negócio na Baixa de Lisboa devolveu aos Valadares  respeito e poder e a casa de Colares foi restituída.

Elisa, professora de Literatura, desde jovem se apaixonara pelo diário do  antepassado, e umas férias meteu-se a caminho da Big Apple, acrescentando ao prazer da viagem um motivo extra. Não sabia o que procurar ou onde, mas o desafio era estimulante.

Nova Iorque pareceu-lhe esmagadora, fervilhante. Instalada no New Yorker, perto da Times Square, dedicou os primeiros dias a absorver  o ambiente, o melting pot de tendências, a cidade que nunca dorme, como certeiramente cantara o O’l Blue Eyes Sinatra. De pescoço no ar deambulou pelas ruas, formigueiro de pessoas apressadas correndo para qualquer lado, a Greenwich Village e ao Soho achou mais à sua escala, abocanhados pela expansão de Chinatown. À noite, festim de néons e luzes, fruiu os imperdíveis espectáculos, adorou Les Miserables, escutou o saxofone de Leroi Moore no Blue Note. Pior era a comida, deslavada, sempre farejando um rodízio ou pizzaria, com surpresa descobriu um restaurante na rua 46, onde devorou a melhor posta barrosã de Manhattan, o dono, o Joe Monteiro de Moncorvo, quarenta anos de América, caprichava na confecção.

O velho diário apontava para a a casa de Antão ficar num ponto da cidade a norte. Nova Iorque mudara muito desde 1650, era agulha em palheiro, lembrava a tarde no Cantinho da Várzea com o Damião Ramires, perito em estudos americanos e colega da faculdade, tentando entender a planta antiga da cidade. Textos da Biblioteca de Utrech consultados no Google ajudaram, os indícios apontavam para a casa ser afastada do rio Hudson, no diário, Antão relatava que era uma hora de carruagem até ao porto, hoje Battery Park, junto ao cais para Ellis Island.

Já em Nova Iorque teve uma ideia: a Biblioteca do Congresso, em Washington DC, o maior acervo do mundo, onde contou com a ajuda de miss Cummings, zelosa bibliotecária e conhecedora de Portugal, em tempos estudara Pessoa. Três dias de hambúrgueres e alguns microfilmes depois, descobriu uma planta de Nova Amesterdão. A cidade era dispersa, nalguns bairros misturando residências e lojas, uma inscrição a tinta-da-china quando já se aprestava a desistir, marcava o nome “valdares” na zona norte, entre o Central Park e Harlem. Aí estava a resposta!

Munida de cópias, voltou à cidade e tentou reconstituir a quadrícula desenhada, era a meio, do lado esquerdo, depois do  Lincoln Center. Sentada num banco do Central Park, onde um furtivo esquilo rodopiava, comendo bolotas, deu consigo a pensar no absurdo daquilo tudo, o que poderia subsistir ainda numa cidade com milhões de habitantes e com alterações abismais desde então. O verde silencioso do imenso parque contrastava com a feérica Quinta Avenida e o luxo de Park Avenue, trauteando The Sound of Silence, à memória vieram-lhe as imagens do mítico show de Simon e Garfunkel que ali ocorrera, era uma missão impossível, se a Rute Carvalho do departamento de História Medieval soubesse mandá-la-ia tratar-se, por certo.

Nessa noite no Virgil’s comeu umas baby ribs aceitáveis, um branco de Martha’s Vineyard distendeu-lhe o espírito, afinal estava em Nova Iorque e pateticamente focada num antepassado morto há centenas de anos. Já terminando o jantar, um vulto, até ali silencioso cliente, abordou-a, o ar perdido e latino da portuguesa despertou-lhe curiosidade, Todd Galagher, apresentou-se, professor de História em Columbia. O relato de Elisa, de repente expansiva com o inesperado mas simpático colega, efeito do branco seco, levou-o a oferecer-se para ajudar na busca. Morava em Queens e no dia seguinte folgava, encontrar-se-iam no lobby do New Yorker.

Todd era um jovem assistente, adepto dos Nicks, escrevera um livro sobre Thomas Jefferson, por sinal amigo dum português, o abade Correia da Serra. Munidos das plantas que Elisa trouxera do Congresso, subiram o Central Park, aos poucos cúmplices nas conversas. Para ele, era improvável existir algo, a ela a localização bastava, não tinha ilusões sobre a casa. Detiveram-se junto ao Dakota, o prédio habitado pela viúva de Lennon, Yoko Ono, Todd, lendo a planta, mandava andar para a direita, na direcção do jardim. Como crianças numa caça ao tesouro, detiveram-se junto a uns arbustos onde Todd, seguro, marcou o chão com o pé, era aquele o local onde pela planta teria existido a casa.

Elisa sorriu e disparou fotos para todo o lado, achara a Imaginação do diário de Antão, o foragido de Colares que um dia partiu  no Mayflower.

Ameaçava chover, contente pela ajuda, Todd convidou para uma ceia no Walinski’s, na rua 42, os melhores tacos da cidade, asseverava. Elisa aceitou, uma mão cúmplice no ombro selava o convite, Antão Valadares ficava definitivamente enterrado no passado.

A cinquenta metros, em pleno Central Park um desenho circular em calçada, semelhante a um grande sol, assinalava no chão o local onde há mais de vinte anos Todd Chapman assassinou John Lennon. Em letras grandes e ao centro, a inscrição IMAGINE. A Imaginação do diário de Valadares. Elisa emocionou-se e abraçou Todd com força.

Era tempo de voltar a Lisboa, o ano lectivo retomaria em breve, três  dias depois teria avião do JFK pelas duas da tarde, os últimos dias foram de relaxe e paixão, com Todd, afinal o prémio da viagem. Para a despedida, combinaram encontro no Planet Hollywood do World Trade Center, na manhã do dia da partida, nada como o skyline de Nova Iorque para uma despedida em grande da Big Apple. Já a caminho do World Trade Center, onde Todd aguardava já desde as oito, um saco esquecido no New Yorker fê-la voltar atrás, faltava a prenda do Jaime, uma T-Shirt do Hard Rock Café. Ao voltar a sair do hotel, sirenes de bombeiros e um fumo espesso e intenso soavam do lado do rio, uma televisão no lobby anunciava um espectacular acidente com dois aviões chocando contra as torres gémeas. Também para Todd, esperando no último piso com um bouquet de gladíolos, essa manhã de Setembro foi de definitiva despedida.

publicado por Fernando Morais Gomes às 18:45

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