por F. Morais Gomes

01
Ago 11

Entusiasmada, Elisa Valadares desembarcava em Nova Iorque, decidida a procurar respostas para o enigma do velho diário. Em 1620, Antão Valadares, seu antepassado, senhor de Colares e acusado de heresia pelos Melo e Castro, aristocratas locais, tivera de fugir para Inglaterra, em Plymouth embarcou no Mayflower com destino a Cape Cod, Massachussets. Aí viveu cinco anos até se mudar para Nova Amesterdão, hoje Nova Iorque, onde montou negócio de ourives. Ao morrer, em 1651, deixou um grosso diário onde misteriosamente escreveu na última página: "tudo o que deixo jaz perto da Imaginação”.

Depois da independência americana e avessos aos yankees, os descendentes de Antão voltaram a Portugal, levando o diário, o próspero negócio na Baixa de Lisboa devolveu aos Valadares  respeito e poder e a casa de Colares foi restituída.

Elisa, professora de Literatura, desde jovem se apaixonara pelo diário do  antepassado, e umas férias meteu-se a caminho da Big Apple, acrescentando ao prazer da viagem um motivo extra. Não sabia o que procurar ou onde, mas o desafio era estimulante.

Nova Iorque pareceu-lhe esmagadora, fervilhante. Instalada no New Yorker, perto da Times Square, dedicou os primeiros dias a absorver  o ambiente, o melting pot de tendências, a cidade que nunca dorme, como certeiramente cantara o O’l Blue Eyes Sinatra. De pescoço no ar deambulou pelas ruas, formigueiro de pessoas apressadas correndo para qualquer lado, a Greenwich Village e ao Soho achou mais à sua escala, abocanhados pela expansão de Chinatown. À noite, festim de néons e luzes, fruiu os imperdíveis espectáculos, adorou Les Miserables, escutou o saxofone de Leroi Moore no Blue Note. Pior era a comida, deslavada, sempre farejando um rodízio ou pizzaria, com surpresa descobriu um restaurante na rua 46, onde devorou a melhor posta barrosã de Manhattan, o dono, o Joe Monteiro de Moncorvo, quarenta anos de América, caprichava na confecção.

O velho diário apontava para a a casa de Antão ficar num ponto da cidade a norte. Nova Iorque mudara muito desde 1650, era agulha em palheiro, lembrava a tarde no Cantinho da Várzea com o Damião Ramires, perito em estudos americanos e colega da faculdade, tentando entender a planta antiga da cidade. Textos da Biblioteca de Utrech consultados no Google ajudaram, os indícios apontavam para a casa ser afastada do rio Hudson, no diário, Antão relatava que era uma hora de carruagem até ao porto, hoje Battery Park, junto ao cais para Ellis Island.

Já em Nova Iorque teve uma ideia: a Biblioteca do Congresso, em Washington DC, o maior acervo do mundo, onde contou com a ajuda de miss Cummings, zelosa bibliotecária e conhecedora de Portugal, em tempos estudara Pessoa. Três dias de hambúrgueres e alguns microfilmes depois, descobriu uma planta de Nova Amesterdão. A cidade era dispersa, nalguns bairros misturando residências e lojas, uma inscrição a tinta-da-china quando já se aprestava a desistir, marcava o nome “valdares” na zona norte, entre o Central Park e Harlem. Aí estava a resposta!

Munida de cópias, voltou à cidade e tentou reconstituir a quadrícula desenhada, era a meio, do lado esquerdo, depois do  Lincoln Center. Sentada num banco do Central Park, onde um furtivo esquilo rodopiava, comendo bolotas, deu consigo a pensar no absurdo daquilo tudo, o que poderia subsistir ainda numa cidade com milhões de habitantes e com alterações abismais desde então. O verde silencioso do imenso parque contrastava com a feérica Quinta Avenida e o luxo de Park Avenue, trauteando The Sound of Silence, à memória vieram-lhe as imagens do mítico show de Simon e Garfunkel que ali ocorrera, era uma missão impossível, se a Rute Carvalho do departamento de História Medieval soubesse mandá-la-ia tratar-se, por certo.

Nessa noite no Virgil’s comeu umas baby ribs aceitáveis, um branco de Martha’s Vineyard distendeu-lhe o espírito, afinal estava em Nova Iorque e pateticamente focada num antepassado morto há centenas de anos. Já terminando o jantar, um vulto, até ali silencioso cliente, abordou-a, o ar perdido e latino da portuguesa despertou-lhe curiosidade, Todd Galagher, apresentou-se, professor de História em Columbia. O relato de Elisa, de repente expansiva com o inesperado mas simpático colega, efeito do branco seco, levou-o a oferecer-se para ajudar na busca. Morava em Queens e no dia seguinte folgava, encontrar-se-iam no lobby do New Yorker.

Todd era um jovem assistente, adepto dos Nicks, escrevera um livro sobre Thomas Jefferson, por sinal amigo dum português, o abade Correia da Serra. Munidos das plantas que Elisa trouxera do Congresso, subiram o Central Park, aos poucos cúmplices nas conversas. Para ele, era improvável existir algo, a ela a localização bastava, não tinha ilusões sobre a casa. Detiveram-se junto ao Dakota, o prédio habitado pela viúva de Lennon, Yoko Ono, Todd, lendo a planta, mandava andar para a direita, na direcção do jardim. Como crianças numa caça ao tesouro, detiveram-se junto a uns arbustos onde Todd, seguro, marcou o chão com o pé, era aquele o local onde pela planta teria existido a casa.

Elisa sorriu e disparou fotos para todo o lado, achara a Imaginação do diário de Antão, o foragido de Colares que um dia partiu  no Mayflower.

Ameaçava chover, contente pela ajuda, Todd convidou para uma ceia no Walinski’s, na rua 42, os melhores tacos da cidade, asseverava. Elisa aceitou, uma mão cúmplice no ombro selava o convite, Antão Valadares ficava definitivamente enterrado no passado.

A cinquenta metros, em pleno Central Park um desenho circular em calçada, semelhante a um grande sol, assinalava no chão o local onde há mais de vinte anos Todd Chapman assassinou John Lennon. Em letras grandes e ao centro, a inscrição IMAGINE. A Imaginação do diário de Valadares. Elisa emocionou-se e abraçou Todd com força.

Era tempo de voltar a Lisboa, o ano lectivo retomaria em breve, três  dias depois teria avião do JFK pelas duas da tarde, os últimos dias foram de relaxe e paixão, com Todd, afinal o prémio da viagem. Para a despedida, combinaram encontro no Planet Hollywood do World Trade Center, na manhã do dia da partida, nada como o skyline de Nova Iorque para uma despedida em grande da Big Apple. Já a caminho do World Trade Center, onde Todd aguardava já desde as oito, um saco esquecido no New Yorker fê-la voltar atrás, faltava a prenda do Jaime, uma T-Shirt do Hard Rock Café. Ao voltar a sair do hotel, sirenes de bombeiros e um fumo espesso e intenso soavam do lado do rio, uma televisão no lobby anunciava um espectacular acidente com dois aviões chocando contra as torres gémeas. Também para Todd, esperando no último piso com um bouquet de gladíolos, essa manhã de Setembro foi de definitiva despedida.

publicado por Fernando Morais Gomes às 18:45

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