por F. Morais Gomes

26
Ago 11

O aspecto desolador do parque de campismo da Praia Grande não deixava dúvidas: antes um agradável espaço junto à praia, era agora um imenso matagal, grafitado e ao abandono, aguardando que o proprietário, apesar de prometer reabri-lo como parque, consiga uma cobiçada licença para aí construir prédios, assim cumprindo o slogan “Um Cacém até ao mar”.

Ricardo regularmente fazia passeios a pé, ora começando na Adraga e calcorreando a falésia até às Maçãs, aí  terminando com um martini no Loureiro, ora fazendo o pinhal por dentro, a ver da construção de casas novas ou do desbaste de mais árvores, sempre ruidosamente saudado por  matilhas de rotweilers que fazem do pinhal um sítio menos seguro que as Galinheiras.

Iniciado o passeio matinal na Senhora da Ponte, e parando uns minutos no horto a ver plantas para o jardim, um restolhar na folhagem pareceu denunciar a presença de animal dentro do recinto vedado do antigo parque de campismo. Algum rato ou lagarto, pensou, a acumulação de detritos só tais campistas tinha condições de albergar, que a promessa de um parque de campismo de 4 estrelas consignada no plano do parque natural por certo nunca passaria do papel. Continuou a caminho da praia, saudado por um sol matinal que finalmente pressagiava o Verão, quando novo ruído, abrupto, surgiu do interior do parque, a vegetação densa junto à rede pouco deixava descortinar. Como a curiosidade matou o gato e Ricardo tinha curiosidade felina, aproximou-se da rede e tentou ver o que seria, as portas há meses que estavam encerradas e nem para capinar as ervas ali alguém ia, transformado em reserva de endémico lixo e construções em ruínas onde até trogloditas desdenhariam viver, a promessa de roulottes modernas e coloridas tendas sempre no horizonte, mas sempre de concretização vaga, enquanto avaro for em mais-valias.

Ao restolhar entre as folhas e no imenso coberto vegetal, conseguiu identificar o som de animais, após uns segundos atento, um estranho e inusitado balir revelou a presença de ovelha ou cabra, intervalado, mas real, seria uma ou mais, que após cinco minutos de persistência finalmente descortinou, duas cabras, brancas, duma espécie desconhecida por ali, pelo menos daquilo que era a sua experiência de cabras. A porta do parque continuava fechada e as cabras pastavam, descontraídas. Acompanhando-as com o olhar, não foi difícil vê-las dirigindo-se para local mais afastado, onde, discretos, dois ou três indivíduos descarregavam móveis de um camião a caminho de uma tenda, grande, da qual só distinguia a parte superior. Curiosamente, um enorme plasma foi levado igualmente, luxo de campista, ignorando porquê para ali, no meio do lixo e com tantos parques mais bem tratados, fora de Sintra, infelizmente.

Contornando o parque pelo lado que conduz à Praia das Maçãs, Ricardo, já desinteressado do passeio matinal, descobriu uma brecha de acesso, e, qual detective de fim-de-semana, procurou averiguar o que ali se passava, ouvira relatos de cultos satânicos na serra, os roubos na zona podiam explicar o plasma levado para a tenda grande. Aproximando-se devagar, duas mulheres, uniformizadas de verde e armadas com pistolas conversavam à porta da tenda, enorme, maior que as usadas pelo Exército em manobras ou semanas de campo, as cabras eram afinal doze. Três homens continuavam a descarregar um camião, uma cama grande com colchão de água, sofás, até um espelho de Veneza, ocorreu-lhe que poderia ser algum exterior para um filme, a zona de Sintra era frequentemente usada como cenário de produções internacionais, talvez fosse o caso. Eram dez da manhã quando inesperadamente os homens interromperam a descarga e, juntando-se-lhes outros quatro vindos do interior da tenda, todos se descalçaram e ajoelharam em cima dum tapete, no que parecia ser uma reza. Árabes, deduziu, era a hora de uma das cinco orações diárias, a orientação na direcção da Pena deu a Ricardo a noção do lado para onde ficava Meca afinal.

Alguns minutos passados, voltaram ao trabalho. Um dos que viera de dentro, era chamado por uma das mulheres armadas, o outro, agarrado a um telemóvel, arengava, a distância à estrada e a vegetação não permitiam que ninguém se apercebesse das estranhas movimentações. O camião tinha matrícula portuguesa, e num momento de distracção, quando os homens da descarga saíram, para almoçar por certo, aproximou-se do vidro, no interior do veículo apenas jornais, e um ticket de entrada no porto de Portimão, por via marítima. Em letras pequenas, na lona do camião, o nome de uma empresa de mármores de Pêro Pinheiro, por sinal conhecida, nos anos noventa trabalhara muito para o Iraque e outros países árabes, era português o mármore de muitos palácios aí edificados.

O ruído das mulheres armadas vindas da tenda precipitou-o para uma moita, só uma das cabras, mais atenta se terá apercebido da presença de Ricardo, continuando contudo a ruminar no urze, por pouco não engolindo uma sandália ali deixada por campistas selvagens. As quatro precediam a aproximação ao exterior de uma figura que até ali ainda não vira, um homem alto com óculos escuros, vestindo uma túnica acastanhada e com um turbante negro. As mulheres, de aspecto escurecido, núbio ou sudanês, pareceu-lhe, por já ter visto na televisão figuras similares, pareciam atentas a tudo, enquanto o homem mirava a serra e o mar ao longe, gritando-lhes de quando em quando umas palavras imperceptíveis. A um sinal, uma alcançou-lhe uma taça com um líquido, parecia leite, das cabras, talvez, que ele bebeu dum só trago, arremessando-a fora depois, e voltando para o interior, um dos homens da reza logo atrás dele, transportando um volume, pelo aspecto parecia um telefone satélite.

Com a excitação o passeio ficou adiado entretanto e Ricardo decidiu voltar para casa, noutra ocasião passaria para ver o que sucederia. Amigo do Martins, o dono do parque, haveria de tirar nabos da púcara, talvez o tivesse vendido a uns árabes, ou emprestado para filmagens, já nos anos oitenta Wim Wenders filmara na Praia Grande, ganhando um leão em Veneza, seria algo do tipo, por certo, os custos de produção e a luz natural recomendavam Portugal para set de muitas produções.

Voltando pela Praia das Maçãs, pausa para um favaios no Loureiro, após o mau tempo inicial de Agosto dias de sol despontavam agora, tardios para muitos já, de regresso de férias e roubados do bronze habitual, até isso a troika levara. Na televisão, uma vitória do Sporting, finalmente, animava o espírito de leão, o imposto para os ricos, a par das inventonas do ministro Relvas, preenchiam o noticiário, típico de silly season. Na Líbia, o Conselho Nacional de Transição anunciava para breve a captura de Khadafi, alguns relatos desencontrados indicavam porém que poderia ter fugido num cargueiro e desembarcado nalgum porto do Mediterrâneo, até Portugal, embora improvável, não estava descartado como destino.

No abandonado parque de campismo, também o homem da túnica castanha via as notícias na Al-Jazeera, e prometia voltar a acampar em tendas melhor localizadas, só a custo os homens lhe arranjavam tâmaras decentes no Continente do Cascaishopping e eram incomodativas, as melgas. Aguardaria, por enquanto, orientado para Meca.


publicado por Fernando Morais Gomes às 12:27

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