A população estava abismada, anos a fio a conviver com o pacato Jorge, pintor de profissão, treinador de basquetebol nas horas vagas, e agora a notícia, saída dum filme americano, com todos os ingredientes de suspense e simulação: um pacato africano, oriundo das ex-colónias, chegado a Portugal há vinte anos, escondia um tortuoso passado, assassino de um gasolineiro em New Jersey, pirata do ar e autor do desvio de um avião. E tudo há mais de quarenta anos. É uma vida, comentava a vizinhança em Colares, acusando agora estranhos tiques no que antes era a expressão de bonomia do vizinho das Casas Novas. Em Colares, não se falava de outra coisa, no Cantinho da Várzea, entre uma bica e um favaios, o assunto era o tema de conversa:
-Pois ele há cada uma, ó Leopoldo!- dizia o Jaime do banco, despachando um galão pela manhã- ainda a semana passada aqui estivemos os dois, a falar do verão, que este ano andava com as voltas trocadas, ele até me pagou a bica!
-É para você ver, amigo Jaime. Quem vê caras não vê corações! -assentou o Leopoldo da imobiliária - É preciso tê-los no sítio para fazer o que ele fez, já viu? Desviar um avião com oitenta pessoas vestido de padre. E como é que ele andou a monte este tempo todo? Olhe, lembra-se do Chico do táxi dizer que tinha visto o Bin Laden por aí e toda a gente caçoou dele? Já não digo nada, não senhor!
Com a televisão em fundo entrevistando os vizinhos, o Vasco foi levantar o som, lá estava o pessoal todo, e o Rui da Junta a atestar o bom comportamento do pintor. Indirectamente, Colares era falado no FBI e nos jornais americanos, podia até ser que a casa virasse santuário, a explorar pelo turismo, aventava o Vasco, já pensando nas bicas e galões que o filão lhe poderia render.
Já chegando a reportagem ao fim, entraram a D. Ivone e o sobrinho, o Vitalino, há mais de dez anos que exploravam um negócio de antiguidades em S.Pedro, morando embora no Mucifal. Ivone Portela era uma mulher vistosa, já entrada na idade, em nova deveria ter sido causa de muitas paixões, mortos o irmão e a cunhada num acidente de viação, adoptara Vitalino ainda pequeno, ajudando na loja, seria dele o negócio um dia destes. Pedindo uma bica escaldada, não resistiu a entrar no tema que a todos espantara:
- Já viu bem isto, senhor Leopoldo? O mundo está perdido, não se pode confiar em ninguém. E eu que o contratei o ano passado para me pintar o quarto, já viu onde poderia estar hoje? E é para cá que vêm todos, só porcaria desta é que vem para Portugal!
-Mas agora vão mandá-lo para lá. Nem quero imaginar, a ter em conta o que se vê nos filmes… Sabe, eu por mim não o extraditava: já cá tem filhos, com a justiça que a gente tem, daqui a uns anos está cá fora, e os americanos nisso, desculpem lá, mas aquilo não é justiça, é vingança! É como nos filmes do oeste: primeiro matam e depois é que vão ver quem era!
Dois guardas da GNR passando no local escutavam sem se pronunciar, um deles, ultrapassado pela PJ, não deixou de puxar a brasa aos galões da sua força, afinal a última a saber:
-Eu já tinha desconfiado de qualquer coisa…- comentou seguro de si o Taborda, deslocado de Ribeira de Pena para Sintra, sotaque cerrado a não deixar dúvidas- ele falava um português assim meio esquisito. Como o Obikwelu, está a ver. E a caixa de correio americana…. Ná, estava na cara, mais uns dias e tínhamos sido nós a deitar-lhe a luva!
-Já viu a medalha do FBI aí no peito, senhor guarda?- elogiou a D.Ivone, deixando o guarda ruborizado, a ver-se a receber a medalha na América, com guarda de honra e tudo. – nós também temos cá gente muito competente!
Recebendo uma chamada a D.Ivone saiu para Sintra com o sobrinho, com o calor, os patos no rio de Colares refrescavam-se divertidos enquanto equipas de reportagem americanas chegavam com carros equipados com antenas para fazerem directos para os States, alguns mais esclarecidos reconheceram até Anderson Cooper, repórter especial da CNN enviado a Portugal. Não fora um telefonema para a irmã, e uma velhice serena estaria reservada ao terrorista reformado.
Alguns dias depois, voltada a troika e a Madeira às primeiras páginas, Colares retomou a pacatez e beleza outonal, os plátanos vítima de emboscada no inverno haviam recuperado a pujança de décadas, os patos nadavam em fila indiana, alguns pequenos e recém-nascidos. Na adega, a vindima havia sido razoável e apesar de pequena, a colheita renderia uns litros de ramisco mais, do teimoso chão de areia que cercado resistia a desaparecer.
Abrindo o Cantinho pela manhã, a ligar as máquinas e servir as primeiras bicas, Vasco estranhou a D.Ivone, sempre a primeira pela manhã, nem o Vitalino com o seu ar lunático apareceu, alterando hábitos de muitos anos. Chegou o Leopoldo, entretanto, para um café rápido a caminho da agência, no jornal da manhã apenas notícias de economia e a inevitável senhora Merkel, a valquíria do fim do euro em grande plano. Interrompendo as notícias, na televisão o canal noticioso dava conta duma detenção importante, muito a custo Leopoldo pareceu ouvir os nomes Sintra e Colares.
-Põe lá isso mais alto, ó Vasco!- atalhou o Leopoldo, alertado para a televisão.
Levantado o som, a jornalista interrompendo uma notícia sobre Jorge Jesus dava nota duma história inacreditável:
“Depois do americano George Wright, Colares, no concelho de Sintra volta a receber a visita da PJ. Dando cumprimento a um mandato de detenção europeu, ali foi detida Rossana Guareschi,uma mulher de nacionalidade italiana, há muitos anos fugida à justiça do seu país, membro das Brigadas Vermelhas e uma das autoras do assassínio do primeiro ministro italiano Aldo Moro no final dos anos setenta. A mulher, que vivia sob o falso nome de Ivone Portela, possuía um antiquário em Sintra, e vivia com o filho doutro terrorista, a quem prometeu criar depois deste falecer na prisão”
-Ele há cada uma!- comentava boquiaberto o Vasco, desconfiando já de Leopoldo, que vistas bem as coisas, tinha cara de narcotraficante sul americano, disfarçado sob um sotaque vagamente alentejano.