Dezanove anos acabados de fazer, enamorados, a estação de Santa Apolónia era a partida para um mês de inter-rail pela Europa, em segunda classe, a possibilidade de ver paisagens até aí só dos postais e revistas. E sobretudo, tempo para os dois. Sofia e Jorge, convencidos os receosos pais de que o mundo ia mais longe que Cacilhas, lá partiram num primeiro de Agosto, quente e tipicamente lisboeta, com mochilas e cantis, a repetir o que já o tio Artur havia feito anos antes, sempre relatado com grande vivacidade e saudade.
O velho Sud-Express, testemunha de muitas partidas dolorosas e chegadas excitadas, de emigrantes a salto e camones louros que de fora traziam a Europa ao rincão, em tempos de chumbo e melancolia, era a porta de embarque para um primeiro banho de Europa para muitos que fora de portas pouco conheciam. Jorge delineara um plano, primeira paragem Paris, vinte e nove horas de comboio, depois se veria. Aos castanhos de Portugal e Espanha, recortados pelos picos nevados dos Pirinéus, a Europa surgiu molhada, em Irun, na mudança para comboio mais moderno e paisagens de vinha e castelos, a Provença e a França industrial. A verdadeira Europa começava aí.Paris foi uma sensação esquisita: a tão aguardada Cidade Luz, fosse pelo tardio da chegada ou pelo cansaço pareceu sombria e soturna: uma ratazana coquette serpenteando nos carris em Austerlitz, já na gare, um clochard sem abrigo dormindo e fazendo duma caixa de sapatos almofada. Paris, enfin!...
Na pousada da juventude, apesar das camaratas separadas, trocaram as voltas do alberguista e partilharam o beliche na dos homens, um casal finlandês, cúmplice, fazia o mesmo, Paris sem amor não era Paris. Baixinho e abraçando-a, nua, Jorge sussurrou-lhe uns versos de Éluard: et d’abord j’ecriverai ton nom: liberté,em liberdade se entregavam, mochileiros de esperança, pelos comboios da Europa. O dinheiro não era muito, mas a diversão imensa: passeios em Pigalle, fotos no Moulin Rouge, a aventura dumas ostras no Boulevard des Italiens, o pai emprestara algum dinheiro, recomendando moderação, que se danasse, a vida são dois dias. Ao fim da segunda noite, na esplanada do Café de La Paix, não estavam Breton nem Hemingway, mas dois portugueses e o mundo, razoáveis exigindo o impossível, despreocupado, um acordeonista tocava velhas canções de Chevalier e Trenet.
Mochilas às costas, a peregrinação continuou, Jorge e Sofia cada vez mais convictos de trilhar a iniciação a um futuro feliz, ele um dia engenheiro, ela professora, as neves dos Alpes e a frieza da Suíça foi a paragem seguinte, marcial, teutónica, duma beleza gélida e formal. Dez graus em Agosto não convidavam a ficar muito, nem o franco suíço dos ricos, ao fim de uns dias, rumavam já para Itália, a bella, e a Veneza, musical, doce, de Rialto e Santa Lúcia, tortellinnis e doges, a melhor cerveja até então, convencia. Em Veneza-Mestre, um encontro insólito: Rogério, um amigo de Almada, solitário com a sua mochila pela Europa também, roupas a precisar de lavagem, uns copos em Murano para assinalar o encontro da agulha em palheiro transalpino. Logo decidiram seguir os três daí em diante, comemorado com grande festa em La Giudeca no velho albergue, cacofónico e ruidoso, não fosse ali Itália e a maioria latinos. Rogério era de Direito, talvez pela novidade após duas semanas só com Jorge, Sofia passou a prestar mais atenção ao novo companheiro e às suas conversas, olhos azuis e meio aloirado, fanfarrão embora, a Jorge ao fim de uns dias não escapou o interesse e gentilezas com que cobria Sofia, que se derretia, ingénua. Falava italiano, e bem, para Sofia o meio sujo amigo parecia um garboso príncipe florentino, condottieri de mochila sulcando os trens da Europa. Jorge achou por bem arranjar um pretexto para se livrar dele, seguirem cada um para seu lado, e recuperar Sofia só para si. Sugerindo Rogério um salto a Viena, Jorge de imediato optou pelo sul, perto de Trieste, a enigmática Jugoslávia é que era, ele que não se prendesse. Tiro ao lado, Rogério também achou bem o sul, e lá foram os três, Dalmácia abaixo, num terreno menos palmilhado pelos mochileiros de Verão, sem néones nem comércio, e gentes com ar triste, do lado de lá da Cortina de Ferro. Rogério estava em terreno virgem, o seu italiano não adiantava, em Belgrado, a língua impronunciável e a falta de estrangeiros fazia-os alvo dos mirones, fixados nas velhas Lévi’ s azuis, símbolo do Ocidente e consumo. Certa tarde, já cansados uns dos outros, e Jorge de Rogério, sobretudo, discutiram sobre o autocarro a apanhar para o albergue, Sofia, amuada, não quis ir com Jorge ou Rogério e voltaram cada um por si, Jorge, mais metódico e com mapas, chegou primeiro, esperando ufano no átrio já com duas cervejas despachadas. Foi a gota no copo cheio: Sofia pegou nas coisas e decidiu seguir sozinha, farta de garotos e rivalidades. Jorge e Rogério tentaram demovê-la, mas foi inglório, nessa noite seguiu sem eles no primeiro comboio que apareceu, Viena, soube Jorge mais tarde, o Danúbio porém pouco azul, só e amuada ao fim de três semanas. Zangados e culpando-se mutuamente, Rogério e Jorge seguiram viagem igualmente. Jorge de regresso a Veneza, Rogério para Atenas, semanas depois de partirem mundo fora o mundo que os juntara à saída de um trem, separava-os agora em mais uma gare de comboio. Não foi sem algum prazer mórbido que Jorge viu Rogério, com a pressa, embarcar em Belgrado no trem errado, com destino a Bucareste, julgando ser o de Atenas, ignorando que sem visto logo seria recambiado para trás. Que fosse, seguiu para a sua linha, era a sua pequena vingança, ele que se virasse.
Contemplando a verde paisagem da Bósnia, pobre e num comboio velho e podre, Jorge foi magicando na vida, nas promessas de felicidade de Paris, e na frivolidade das mulheres. La donna é mobile, cantava a ária de Verdi, e bem certo era. Reentrando em Itália, voltou a Veneza, dali iria a Pisa, Génova, a riviera francesa depois. Sózinho, decidiu-se a fazer um diário, à falta de Sofia e dos beijos quentes no beliche. Com a mochila suja, e já sem roupa limpa, sentou-se a ver os pombos em São Marcos, o relógio secular marcava as seis da tarde e a praça fervilhava de turistas e ruidosos gondoleiros, num caderno deu-lhe para escrever um poema. Lembrou Dick Bogarde e o filme de Visconti, em magotes, os turistas capturavam tudo em flashes intermináveis. Numa esplanada, já perto do Grande Canal, a silhueta morena e magra duma mulher jovem, sentada de costas para ele, despertou-lhe a atenção, estava só e escrevia também, desenhava uma torre Eiffel, reparou de longe. Forçado o encontro, era Sofia, a irritada mas bela Julieta que ele, Romeu idiota, deixara escapar por causa dum reles Capuleto da Margem Sul. Sem que ela abrisse a boca, recitou, em francês:
-Et d’abord, j’écriverai ton nom: liberté !...
Um impulsivo beijo cinematográfico foi aplaudido por japoneses que logo o registaram em foto, um gondoleiro de bigode retorcido, sorrindo, aplaudia, comentando em voz alta: Ecco!, sei Venezia, sei l'amore..., arlequim e columbina reencontravam-se, saudados pelo esvoaçar das dezenas de pombos arrulhando sobre a basílica.
Depois de Nice e Marselha, um cansativo e enriquecido regresso a casa, a certeza dos perigos do amor ressaltada e a segurança da velha cama em casa, retemperadas as energias, anteviu dias de felicidade e futuro. Fora um mês de alegria e descoberta, do mundo, mas deles sobretudo.
Enquanto isso, na fronteira romena, um atarantado português sem visto era apertado pela milícia de Ceausescu. Sem dinheiro, e finda a validade do bilhete, ainda passaria por apertos antes que esfomeado e sujo voltasse à velha e agora saudosa Santa Apolónia, de muitas partidas chorosas e também alegres chegadas.