6 de Setembro de 1966, a serra de Sintra era motivo de notícia na imprensa nacional e estrangeira, violento fogo lavrava com intensidade brutal na Penha Longa, Quinta de Vale Flor, Lagoa Azul e Capuchos, favorecida por elevadas temperaturas e constantes mudanças de vento forte. Seteais, Monserrate, a Pena e até S. Pedro estavam em risco. Todos os corpos de bombeiros do distrito de Lisboa foram mobilizados, aos quais se juntaram corpos das Caldas da Rainha, Elvas e Leiria, até forças militares integraram o dispositivo de luta contra o fogo, num total de quatro mil homens. Sitiada, Sintra era pasto das chamas, destruidoras e cruéis, assassinas cruzavam o ar, a vila dos turistas e veraneantes transformava-se em quartel improvisado para uma batalha que durou 6 dias, lançando cinzas e fumo a quilómetros, destapando um clarão enorme e infernal nas noites intermináveis. Nos cafés, alimentos e bebidas eram fornecidos aos soldados da paz, que nunca em suas vidas haviam visto tal coisa.
Por esses dias, Luís fazia o serviço militar em Queluz, a rotina do quartel repartida entre serviços rotineiros e a angústia pela incerteza de uma indesejada chamada para o Ultramar. Aos vinte anos, noivo da Angelina, a oficina de torneiro mecânico do tio haveria de chegar para começo de vida, se tudo corresse bem uma casita de duas assoalhadas em Queluz estava debaixo de olho.
O incêndio apanhou-o no quartel, o Regimento de Artilharia Anti-Aérea Fixa de Queluz (RAAF) ficava na proximidade de Sintra, toda a manhã do dia 6 se haviam escutado sirenes dos carros de bombeiros a caminho dos pontos em perigo, a Emissora Nacional relatava danos consideráveis na vertente virada a Cascais, mas por toda a serra focos se espalhavam incontrolados, populares com ramos de árvores, cansados e impotentes, faziam o que podiam. Preparava-se para almoçar uma feijoada, na messe, quando o comandante de batalhão mandou formar na parada, urgente, era preciso acorrer ao fogo, todos os meios disponíveis estavam a ser mobilizados. Reunidos os homens em viaturas, saíram a dar apoio. A abundância de mato por limpar, por haver sido proibido tirar mato da serra, ajudava a propagar o fogo, Luís, com mais alguns homens foi enviado a ajudar perto da Peninha, se bem que se denotasse no tenente alguma insegurança sobre onde atacar e quando. Nervosos, os comandantes dos voluntários dividiam-se sobre a frente prioritária, apagado num lado, com as velhas viaturas há muito em idade de reforma, reacendia logo noutro, zonas antes cerradas eram agora clareiras incandescentes. Envolta num braseiro, a Tapada do Mouco pouco tinha já de verde. O Antunes e o Fernandes, do pelotão de Luís, davam luta, homens do campo, rudes e habituados à mata, era inglória porém a luta do homem contra as chamas, Lúcifer parecia ter-se mudado para Sintra levando o inferno até lá, triunfante. Nessa noite, pernoitaram na serra, poucas e inseguras horas, umas senhoras do Penedo alcançaram leite e sandes de presunto. Passando no local, um jornalista do “ Diário de Notícias” dizia ao major que se falava em declarar o estado de sítio, e mandar vir pessoal de Santa Margarida, tais as proporções que o fogo tomava.
Durante todo o dia 7, exaustos e sem coordenação, Luís e os camaradas quais baratas tontas, acorriam onde o tenente, histérico, ordenava, a chuva de Setembro, que tão necessária era, tardava em aparecer. Ia de estio o Setembro, estranhamente rondando Sintra. Segundo os comandos, mais de cinquenta quilómetros estariam sob pasto das chamas, vestígios na Lagoa Azul indiciavam poder ter origem criminosa. O Antunes transpirava, de galho na mão, asfixiados pelo fumo, dois cabos tiveram de receber assistência e voltar para Queluz. Luís fazia o que podia, pensando em quando aquilo terminaria. Todo o dia a serra ardeu. Chegada a noite, o clarão laranja do apocalipse voltou a sentir-se no seu belo horrendo, persistente, o fogo levava a melhor.
O tenente, temerário, mandou avançar para o Alto do Monge, tentaria um corta fogo, e aberta uma frente, combater fogo com fogo, este inimigo, diferente do dos manuais, não tinha pernas nem balas, a estratégia pareceu-lhe adequada. Todos os homens tomaram posições na zona, bem no epicentro do incêndio, os carros dos bombeiros, civis, protegiam as povoações prioritárias. Aos poucos, cem anos de arborização perdiam-se sem apelo nem agravo, de Cascais a serra tinha o ar dantesco de dia de juízo final. Moto-bombas dos Lisbonenses passaram em correria por eles e reposta a água necessária concentraram-se num local elevado, mas perigoso contudo. A dada altura, o Antunes gritou por trás dele, uma mudança do vento criara uma nova frente ali perto. Luís ficou apreensivo. Fogo pela frente e pelos lados, uma coluna ameaçadora chegando por trás, o tenente ordenava que se mexessem, ele próprio tentando posicionar-se. Mais vinte e um camaradas estavam naquele penedo, perto da anta do Monge, por ironia chamado Cerro da Queimada, não muito longe dos Capuchos. Aumentando o calor e o fumo, aos poucos deixaram de se ver uns aos outros, gritos lancinantes abafados pelo fogo invasivo escondiam o Inferno recolhendo novos prisioneiros, impotentes anjos naquele Setembro negro. Afogueado e de tronco nu, Luís viu-se perdido, já não via nem ouvia os camaradas. De relance, pensou na Angelina, olhou o céu, vermelho e absorto de si sentiu-se levar, colhido e febril. Possuída, a serra de Sintra ganhava mártires e os homens, heróis. Até que Lúcifer, desperto, regresse, ameaçador e inclemente, faminto de carne esturricada e impotente. Regressará?