por F. Morais Gomes

09
Set 11

Teve a Inquisição de Lisboa notícia da edição dum livro de Diogo de Sintra sobre o governo das nações, e lendo-o, achou que continha coisas escandalosas, ordenando que o autor fosse alvo de buscas, corria  o mês de Abril de 1644. Homem culto mas cristão-novo, suspeito de heresia, da sua casa em Belas uns quinhentos volumes foram levados para serem examinados, dezasseis listados no Index librorum prohibitorum. Concluiu-se que, alem de herege queria introduzir em Portugal obras ofensivas da fé, pelo que foi preso.

Diogo, já perto dos quarenta, era pessoa abastada, adepto de ideias modernas na governação dos reinos, dividindo o tempo entre o retiro de Belas e viagens a França e à Flandres, interessado, decidira-se a escrever sobre o governo e os valores da moral. Agora, insidiosos inimigos comprometiam-no e de Belas levaram-no sob prisão para o Santo Ofício onde um alcaide dos cárceres o pôs em cárcere de vigia, num corredor sem luz. Na casa do tormento, fronteira e algoz, preparava-se a sua  perdição.

Era um homem de prestígio, amigos bem colocados, próximo de um secretário do rei, haveriam de o inocentar, pensou. Chegado, depois de revistado e retirados os bens pessoais, o alcaide e dois guardas levaram-no para o cárcere. Só cinco dias depois compareceu perante os juízes, na casa da Mesa do Despacho. Sobre um estrado, uma grande mesa, coberta de coiro preto e vestida de damasco carmesim,  um missal para os juramentos, uma tábua com a oração do Espírito Santo e os Regimentos do Santo Ofício e do Fisco, o Collectório das Bulas Apostólicas e Privilégios da Inquisição, tinteiros de prata e uma campainha. Os inquisidores, solenes, eram todos de avançada idade. Frei Gaspar dos Inocentes rezou a oração do Espírito Santo e começou a audiência, com a sessão da genealogia. Ainda seguro de ser vítima de um erro,Diogo indicou nomes dos que o queriam perder, inveja, alegava.Contudo, nos dias seguintes, os guardas descobriram que observava o jejum judaico. Conhecedores do facto, os inquisidores lançaram-se sobre ele, implacáveis: Quantas Páscoas celebrara comendo o cordeiro pascal com pão ázimo? Já deixara de comer carne de porco, lebres, aves, ou peixes sem escama? Tudo negou, atarantado.

O julgamento foi um desfilar de editores que se diziam enganados, guardas que asseveravam rituais heréticos na cela, vizinhos da quinta de Belas que juravam ter ouvido blasfemar contra Deus e a Virgem. Perdido, foi condenado ao garrote, no Terreiro do Paço. Começou então o lento ritual da expiação, com a morte para si e outros companheiros de infortúnio aproximando-se. No domingo antes da data aprazada, o inquisidor mais antigo participou a El-Rei que o auto se publicaria  em todas as Igrejas de Lisboa para que nesse dia não houvesse sermão ou procissão, nomeou-se desembargador para o despacho dos relaxados, chamou-se um pintor para os retratos e os hábitos que haviam de levar, escolheram-se os clérigos para a leitura das sentenças. Diogo, na cela, vendo o tempo esgotar-se na ampulheta, jejuava, mais por prostração que por ritual, as cartas para o secretário do rei não haviam tido resposta.

Na véspera do dia aprazado e compassadamente, cumpriram-se os procedimentos: preveniram-se os religiosos que haveriam de dar apoio espiritual aos condenados para se apresentarem no tribunal; notificaram-se os relaxados, deu-se-lhes um padre que lhes cuidasse da alma, mandou-se recado ao tesoureiro da capela real para armar os altares do cadafalso e ao reposteiro-mor para o fazer revestir de panos como era de uso, avisaram-se os familiares dos presos para estarem no pátio da Inquisição no domingo de madrugada, e o prior de S. Domingos para  levar o guião de S. Pedro Mártir e preparar a procissão, juntaram-se as sentenças aos processos. A mulher de Diogo, D. Luísa, num pranto ainda se rojou aos pés do inquisidor-mor no Rossio, mas foi repelida por um meirinho. À tarde, chamaram-se os homens que deviam conduzir as estátuas dos condenados e as arcas dos processos e fez-se  cópia da lista dos presos para o alcaide, declarando os que levariam hábito penitencial, afogueado, mordaça ou carocha;para o inquisidor encarregue de presidir à entrega dos penitenciados aos que deviam acompanhá-los; para o meirinho, com o nome dos vivos e o dos defuntos cujas sentenças se leriam no auto e distinção das abjurações, para no mesmo modo fazer chegar os réus ao lugar onde ouviriam as sentenças e juntar os que houvessem de abjurar; e  para os notários, para que fossem dando os processos aos clérigos leitores das sentenças e abjurações em tempo devido.

Chegada a hora aziaga, pôs-se em marcha a terrível procissão: os dominicanos, com o guião do Santo Ofício; o solicitador, de vara alçada; os guardas dos cárceres, com mordaças para os que perdessem a compostura; os penitenciados,  vinte e oito, cada qual com seu familiar, onde seguia Diogo, de olheiras escurecidas e uns quilos menos e Luísa, inconsolável; o capelão do cárcere da penitência levando o crucifixo, rodeado de familiares com tochas; e logo depois, cinco relaxados: quatro homens e uma mulher com os religiosos que lhes assistiam, dois em estátua, por entretanto terem morrido no cárcere; e vários ministros da justiça, para os livrarem da violência de algum popular mais fanático.

Chegados ao cadafalso, presentes os que em nome de Deus julgavam da vida e da morte, subiu ao púlpito frei João de Sousa, esmoler-mor, que pregou o sermão da praxe, exaltando a religião católica e condenando as heresias, que leu o édito da fé, no qual se incitava a denunciar os heréticos e impenitentes. Perguntado a Diogo de Sintra se abjurava, o pavor duma morte terrível, para espectáculo da turba ignara e ávida de sangue, levou-o a tudo confessar, num choro convulsivo, simulando três vezes o sinal da cruz, iludido da salvação. A Mesa entendeu porém que o fazia apenas com o intento de escapar da morte, e confirmou a sentença. Depois de lida, o inquisidor mais antigo tomou sobrepeliz, estola e capa roxa, e com a autoridade devida às funções, procedeu à absolvição, seguido dos clérigos da freguesia, dos clérigos leitores e do capelão do cárcere da penitência, os quais com as varas tocaram os penitenciados, depois do que voltou o inquisidor ao seu lugar e se leram as sentenças dos relaxados. A de Diogo de Sintra, relatadas longamente as suas culpas, terminava com fatais palavras: Christi Jesu nomine invocato, declaram o réu convicto e confesso no crime de heresia e apostasia, e que foi e ao presente é herege apóstata da nossa santa fé católica, e que incorreu em sentença de excomunhão maior e em confiscação de todos seus bens para o fisco e câmara real e nas mais penas em direito estabelecidas”

O desenlace estava decidido. O meirinho entregou Diogo e os demais aos ministros da justiça secular que assistiam e os inquisidores selaram as sentenças com o selo do Santo Ofício, dando-as ao inquisidor mais antigo e ao desembargador que presidia no despacho dos relaxados, que condenou todos à morte, sendo Diogo de garrote, por ter abjurado, pois apenas se queimavam vivos os hereges profitentes. Os relaxados  voltaram ao Rossio, em procissão, onde o alcaide do cárcere da penitência os recolheu nas prisões, para mais tarde  serem açoitados, e  conduzidos à cadeia pública os condenados a degredo, depois de instruídos na fé.

Diogo de Sintra, um dos trinta e dois confirmados, soçobrou no garrote, com o pescoço despedaçado. Frente ao Terreiro do Paço, o rio ondulava revolto e o céu escurecia, periódicas testemunhas da cruel justiça dos Homens.

publicado por Fernando Morais Gomes às 20:26

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