“In Dublin´s fair city/Where the girls are so pretty/ I first set my eyes on sweet Mollly Malone”. A música ecoava nostálgica e doce, no balcão do 0´Leary, no Temple Bar, ao ritmo das Guiness, música dos Chieftains, Dubliners e outros baladeiros da green Ireland animavam as tardes logo noite e madrugada da terra do caldeirão de ouro na ponta do arco-íris. Assim era nas lendas, não tanto na realidade, acossado o tigre celta, o desemprego espreitava e casas ficavam por vender. Para Júlia, o emprego de hospedeira na Ryanair, antes sonho e oportunidade, era agora diário risco, dependente do apertar de cinto com a crise.
Júlia partira em 2007, um curso de História que a trazia no desemprego fê-la trocar Lisboa e as noites no Bairro pelas neblinas de Dublin, cidade alegre e sempre pronta para o crack, a maneira irlandesa de fazer a festa, em pubs e em torno do guloso sumo de cevada. Três meses depois, conheceu Patrick no O´Leary, um jovem economista e broker na bolsa, ao som da Molly Malone haviam iniciado uma relação forte e apaixonada. Entre viagens para o continente, em serviços low-cost e jantares no Gogarty’s, passaram três anos, o regresso a Portugal adiado, um novo futuro anunciado.
Nessa noite, de novo no O´Leary, pensativa e saboreando um capuccino, tudo era já diferente, a Patrick, que há semanas se queixava de enxaquecas, após exames fora diagnosticado um tumor no cérebro, não podiam operar, sessões de quimioterapia traziam-no enfezado e triste, de Portugal as notícias eram pouco animadoras, a loja de móveis do pai em Lisboa falira e pensava retirar-se para o norte, onde com algum pé de meia viveria com a mãe o resto dos seus anos. Ela mesmo diariamente via colegas despedidos ou transferidos, a política da empresa era não renovar contratos e contenção.
O velho Liam, bandolinista e animador das noites, era já um velho conhecido, simpatizara com a portuguesa quando um dia ela lhe cantou um fado, numa voz tão cristalina que logo ficou fã, levando horas depois do show no bar bebendo Guiness e cantando. Anos antes fora amigo de Edge, dos U2, juntos correram bares e pubs antes de ficarem internacionalmente famosos.
Liam estava a par da história de Júlia, nessa noite depois de cantar o Whiskey in the Jar pela enésima vez, sempre como se fosse a primeira, sentou-se no balcão e pediu mais um pint, Júlia estava tristonha mas sorriu ao velho amigo, cabelos brancos compridos rematados com um rabo de cavalo, a realçar a natureza rebelde do velho cantor de estrada. Liam animou-a:
-Come on, litlle portuguese, as coisas hão-de melhorar! Nada que um bom pint não resolva!
Júlia esboçou um sorriso, nesse dia Patrick ficara em casa, cada vez menos sociável, ela que sempre o acompanhava decidira-se a espairecer, no aconchego do O’Leary.
-As coisas estão sérias, Liam. O Patrick está a esmorecer com a doença, e na Bolsa parece que querem aproveitar para lhe propor uma rescisão, está tudo muito negro!
-Bloody bastards!- rosnou o velho baladeiro, anos de estrada, entre bares e barris- Há que ter esperança!. E pegando da guitarra cantou uma balada só para ela, uma furtiva lágrima caiu-lhe da face salitrando o capuccino. Terminada a canção, Liam acercou-se de Júlia , pegando-lhe as mãos e olhando-a nos olhos, animou-a:
-Júlia, estamos na Irlanda, a terra das fadas e dos duendes, onde tudo acontece. Sabes porquê? Porque há magia nas coisas. Quando queremos muito uma coisa, ela acontece, porque a força do homem é a maior de todas as magias!. Interrompendo para dar um golo no pint, continuou:
-Um dia destes hás-de encontrar o teu four leaf clover! Um trevo de quatro folhas, you know?. E quando o encontrares, guarda-o, pois todos os teus desejos se tornarão realidade. Uma folha é para a esperança, outra para a fé, a terceira para o amor e a quarta para a sorte. Believe me, i know what i’m saying!
Júlia abraçou o amigo, que não resistiu ao vigésimo pint, e voltou para casa. Patrick, absorto, fazia zapping desinteressado de tudo, no sofá o Irish Times anunciava o aumento do desemprego, a crise atacara forte o orgulhoso tigre celta.Júlia abraçou-o e em silêncio deitaram-se, a noite estava fria e os seus corações também.
No dia seguinte, a caminho do aeroporto para uma viagem até Londres, Júlia caminhou um pouco pelo Phoenix Park, o vasto prado verde da cidade onde alguns esquilos saltitavam era revigorante, o seu espírito precisava de silêncio e paz interior. Perto duma árvore, alguém esquecera um livro, O “Ulisses” de Joyce, o grande escritor irlandês. Ao pegar-lhe, mesmo ao lado, deparou com alguns trevos silvestres, um, mais desenvolvido tinha quatro pétalas, era a primeira vez que via um, raro e símbolo de sorte. Colheu-o, admirando-o fixamente, colocou-o dentro do livro e foi trabalhar. Liam ficaria surpreso, quando soubesse, ainda na véspera lhe havia falado da lenda. Coincidência, pensou Júlia, uma flor é apenas uma flor.
O voo de Londres foi sem história, foi e voltou duas vezes, pela noite regressou a casa, comprara pizzas no aeroporto, com um vinho alentejano que trouxera da última visita a Portugal tentaria animar Patrick, encafuado em casa, depois da sessão de quimioterapia.
Metida a chave à porta, estranhou a luz meio quebrada, uma música romântica tocava na aparelhagem, Patrick, sorridente, vinha da cozinha com um rosbife apetitoso. Júlia estranhou, a mesa estava posta com velas, um incenso de jasmim exalava do parapeito da janela. Antes que tivesse tempo de abrir a boca, Patrick beijou-a e puxou-a para o sofá:
-July, i have great news! Estive no hospital de manhã, o doutor Callaghan viu os meus exames e disse que estou curado! O tumor encolheu, e pode ser retirado!
Júlia abraçou-o com veemência, beijando-lhe a cara e pescoço, alguma luz finalmente num túnel cada vez mais escuro. Mas não era tudo:
-Ah, e mais! Ligaram da Bolsa, ofereceram-me uma chefia no sector tecnológico. Isn´t that marvellous,?
Arregalando os olhos, Júlia correu para junto da mala, e de lá retirou o “Ulisses” que encontrara no Phoenix Park. Lá estava no meio o trevo de quatro folhas, Liam acertara: a magia, fazem-na os homens.
No dia seguinte, já com Patrick, voltou ao O´Leary, Liam tocava e cantava, posto a par das notícias abraçaram-se os três, fazendo o seu crack especial. Retomando o lugar junto da banda, Liam pediu silêncio e falou para os presentes que enchiam o bar:
-Fellows, temos connosco hoje a Júlia e o Patrick. Peço-vos que cantemos com eles, pois magia foi feita na sua vida. Um brinde ao Patrick e a Júlia!
E pegando na guitarra, desfiou a velha e mágica canção: “In Dublin´s fair city/Where the girls are so pretty/ I first set my eyes on sweet Molly Malone....”.