Os corpos rodopiavam, lascivos, num jogo de sedução que terminaria com a conquista da presa, lânguida e fêmea. O dançarino, castigador, conduzia, e premonitória a liturgia do engate seguia o seu caminho. Turistas em Buenos Aires, Penélope e Mauro deambulavam por lugares mágicos nas casas de tango de San Telmo e pelo colorido Caminito, que Gardel cantara, antes mundo de estivadores e rameiras e agora capital do tango, epidérmica dança de malandros e mulheres da vida. Perdidas ou desencontradas, Evitas da vida, num tempo fora deste tempo, abordavam clientes à porta, vendendo tórridas noites de paixão.
Na sala de baile, as melodias, cantadas por um dolente e nostálgico magricela convidavam a um guloso vinho chileno, que acompanhava um bife de chorizo acompanhado dum fabuloso queijo assado derretido sobre batatas recheadas. Mauro era desenxabido, careca aos trinta, óculos de massa fora de moda e mirava Penélope como Ribeirinho a Tatão no saudoso Pai Tirano. Ao ecoar do mítico El Dia que me Quieras suspirou e beijou a mão de Penélope que apaixonada pelo seu carequinha desfrutava desses momentos únicos, vamp do seu par, realizando um sonho, muito melhor que os Alunos de Apolo, ele muito pouco Apolo, ambos muito mais alunos.
Buenos Aires cumpria o seu Inverno austral quando era Verão na Europa, Mauro, alertado pelos médicos, sabia-se enfermo e fugia da realidade. Leucemia, sentenciara sem suavidade o doutor Baldaia, tempo para desfrutar da vida que restasse, cinzenta e amorfa, entre depósitos e cobranças no pacato balcão do banco em Mem Martins, agora em merecidas férias por gentil facilidade do Borges da agência, que facilitara um circuito a prestações, a pagar quando pudesse.
Cidade europeizada, sem negros ou índios, lembrava-lhe Madrid ou Sevilha, um obelisco branco rasgava triunfante a praça principal. Junto à Casa Rosada, antigas “madres da Praça de Maio”, mães roubadas aos filhos pela ditadura militar, posavam com um olhar amargurado para os turistas, que da Argentina só conheciam Maradona. Penélope quis ver o túmulo de Eva Péron, ao entrar sob chuva copiosa no cemitério de La Recoleta, Mauro teve um arrepio de espinha, antecipando ele mesmo um dia desses o seu féretro atravessando uma alameda de cedros em Lisboa.
O seu casamento nunca fora de paixões assolapadas, a custo tinham comprado casa, sem filhos, após um aborto com sequelas, viviam uma vida de rotina no subúrbio, com poucos prazeres para além do semanal jantar no shopping ou os domingueiros passeios pela praia, pejados de silêncios, os silêncios dos sórdidos domingos. Penélope, a leste do diagnóstico, notara-lhe ansiedade à partida, até pela pressa com que quisera fazer a viagem, embalados pela música e a boa comida, conseguiam por uns dias momentos de pura evasão.
Já perto do dia do regresso para uma etapa de incertezas, voltaram a um show de tango, com jantar incluído, agora no mítico Viejo Almacén, casa cheia das memórias de gerações de “desperados” e mulheres de faca na liga. Ao canto, um pianista ensaiava Piazzolla, a modernidade do tango, intimista e urbano, mágico, contudo, e já com a casa cheia, lá desfilaram familiares o Adios Muchachos e La Cumparsita, e mais para o fim, desafiando os clientes, o clássico A Media Luz, à media luz viveriam dias de amparo e reencontro com a vida também ela rodopiando entre sombras e claridades.
Uma empregada trigueira e vaporosa correu as mesas, e arrastando as cadeiras, desafiou os embaraçados clientes a entrar na festa e soltar emoções. Acanhados, Mauro e Penélope de início fizeram menção de não querer dançar, ante a insistência, lá se juntaram aos demais turistas, três japoneses delirantes tornavam a cena patética, rodopiando como machos latinos e disparando flashes sem conta, emborcando o milagroso tinto que faria dessa por certo uma noite grande uma vez regressados ao hotel e ao previsível despertar acossado do império dos sentidos.
Mauro agarrou Penélope, olhando-a olhos nos olhos, ensaiou uns passos, trôpego,pé de chumbo para quem o plateau dos salões não era o terreno mais seguro. Envolvido pela música e soltando o corpo entorpecido, acabou ganhando o jeito, e depois de um copo, cada vez mais solto e confiante, conduziu Penélope como matador toureando a fera na arena. Entusiasmado, tirou o pulôver e trincando uma rosa vermelha entre os dentes rodopiou a sua fêmea pela sala, livre e possuidor, arrancando mesmo aplausos ao pianista e aos japoneses que bebiam sem parar, amarelos, porém cada vez mais avermelhados.
No fim dessa noite memorável, voltando para o hotel na 9 de Maio, dispensado o táxi e seguindo a pé, abraçados, deambularam na penumbra romântica do Caminito, familiar Pátio das Cantigas das pampas e repetiram o rodopiar anárquico do tango, felizes e realizados. Dum telhado, dois gatos olhavam admirados, enquanto um Mauro careca e já sem óculos arrebatava Penélope e a beijava com sofreguidão, rasgando mesmo na euforia dois botões da camisa e provocando com o gesto brusco a fuga assustada dos felinos. Qualquer que fosse o destino, não cederiam um dia mais que fosse à avareza de deixar de ser felizes. Até que finito, chegasse El Dia que Me Quieras.