Havia uma semana que deambulavam pelo Alentejo, apontando a ocidente, Rocinante, acusando o peso de cavalo velho mal se arrastava pela quente planície, enquanto o burrito de Sancho, teimoso, se negava a continuar. Passado o Tejo em barcaça, e pernoitando numa aldeola junto a Sintra, de nome Montelavar, numa estalagem pobre e chã viu o nobre Dom Quixote poderosa mansão de gente da mais fina fidalguia e nos saloios que os acolhiam nobres de farta fazenda, quiçá parentes de algum grande de Espanha. A taberneira, a Aldegundes do Demétrio, estranhou os trejeitos do espanhol e a desconchavada armadura, safava-se Sancho, que travava os ímpetos do amo, tecendo elogio de manjar dos deuses a um prato de torresmos que lhes serviram para matar a fome, enquanto o seu senhor fazia vénias cortesãs à labrega estalajadeira servida de robusto buço, no qual o avisado cavaleiro viu um sinal de nobreza transmitido pelos antepassados.
Alojados na aldeia, ao dia seguinte, refrescadas as montadas, partiram para Sintra, de que muito o cavaleiro da triste figura lera em Crónicas de Fernão Lopes, e onde amiúde se deslocava El-Rey Filipe, agora senhor destes reinos, por herança e direito, a visitar o imponente eremitério dos Capuchos, que um dia comparara ao portentoso Escorial.
As verdejantes encostas lembravam ao ilustrado cavaleiro a Bretanha dos cruzados, no alto, descortinando o ameaçador castelo de algum infiel califa, fez guarda com a lança, ordenando trote ao Rocinante e atenção ao simplório Sancho. Entrava-se em reino de Mafoma, e apesar de conquistado pelos guardiães do Templo todo o cuidado era pouco, podendo a cada momento de cada várzea surgir um mouro infame, a quem como depositário das tradições de cavalaria deveria trespassar. Sancho sossegava, os povos mais não eram que campónios na faina das hortas, belas maçãs vira, guloso, passadas as terras de Almargem, e farta parecia a vila ao taberneiro feito escudeiro.
Tendo surgido duma eira um saloio em seu jumento, a caminho da Malveira, saudou-o de forma cortêz, destapando a tina de barbeiro que lhe servia de elmo, assim cumprimentando todos os abastados habitantes daquele burgo. Já perto do Chão de Oliva, viu surgir ao caminho uma colareja num burro, Constança Sapa, de seu nome, e queijeira de mister, que vendo os forasteiros almejou vender-lhes deliciosas queijadas. Desconfiado, Quixote mandou que sumisse, mezinhas de bruxa, lhe pareciam. Sancho, guloso, bem quis provar uma mas temendo a fúria de seu amo, calou, deixando a velha praguejando contra os atoleimados castelhanos que assim desdenhavam dos seus celebrados doces.
À vista das chaminés do Paço, um súbito grito de guerra saiu da boca do velho de La Mancha: ali estavam as vis masmorras do gigante Formentor, de quem lera em trechos do português Castanheda e que tanto vivia no mar como devorador se aboletava nas terras de incautas gentes. Deixando o Rocinante enervado, e relinchando agitado, Quixote deu ordem de investir:
-Ataquemos, fiel Sancho! Frágeis donzelas estão cativas nas masmorras daquele paço! Por Deus e Santiago! À minha ordem, honra e glória!
Já o corajoso libertador investia campos fora, quando assustado o burrito de Sancho lhe atalhou a marcha, evitando o pior:
-Senhor Quixote, Virgem Maria, travai vossos actos que aquele é o paço d’el rey ! Vede o estandarte! Não afrontemos quem é por nós, pois pode a ira de Don Filipe fazer perder-vos em terras de Portugal!
-Sai da frente, leal Sancho, deixa que trespasse o monstro, já azeite a ferver vejo cair de caldeirões pelas muralhas! Vinde, títeres infiéis! A meu ferro, mostrengo desalmado!
A custo, o pançudo escudeiro travou o ataque solitário, por ele ao menos se detivesse em suas iras. Acalmando um pouco, mas não convencido, às ordens do dono o fiel Rocinante deteve a marcha, já soldados da guarda vinham ao caminho a ver quem eram tais temerários forasteiros. O capitão da guarnição, Don Roboredo y Gárzon vendo o perturbado e patético cavaleiro de lança em riste, deu-lhe ordem de prisão, mandando-o desarmar e escoltá-lo até ao paço, onde se apuraria o motivo de desafiador entrar armado na vila reguengueira, e apurar a soldo de quem viajava. Dom Quixote exigiu alguém da sua estirpe, o alcaide-mor ou o estribeiro do rei, sacudindo as mãos dos soldados que o detinham, fez menção de sacar da espada, quando de imediato o imobilizaram no chão como reles salteador:
-Largai-me infames! Eu sou Don Quixote de La Mancha, Grande de Espanha e da Andaluzia. Levai-me a vosso amo ou um certeiro degredo em Ceuta acalmará vossa insensatez!
O capitão da guarnição, achando o forasteiro perturbado, ordenou que o largassem sem alijar a atenção, em surdina, Sancho inteirava o capitão das visões e febres de seu amo, velho lavrador enterrado em livros pensando ser predestinado cavaleiro andante. Tido enfim por inofensivo, foi deixado em paz, sujo e poeirento, dessedentando-se enfim junto à Fonte da Sabuga. Sintra era definitivamente hostil, volvendo pela estrada que levava a Lisboa, lançou um olhar ao castelo mouro, vociferando despeitado contra o Monte da Lua:
-Por Deus e Santiago, Sancho, em verdade te digo, esta é terra de desalmadas gentes! Sangue turbado de Mafoma! Toma nota do que te digo: breve voltarei, e não me chame Don Quixote da nobre casa de La Mancha ou as chaminés do Demo não demorarão a tombar! Trarei um exército de bravos e prestes o estandarte de Santiago flutuará naquelas vis muralhas!
Regressando pelo cálido Alentejo aos livros e tratados de cavalaria, levou o Cavaleiro da Triste Figura os meses seguintes na soalheira casa em La Mancha, planeando a conquista do insurrecto bastião, que, milenar, lá continuou vendo reis e princesas, e cavaleiros até, dos verdadeiros e de estirpe, porém. Não fossem as aprazíveis atenções da bela Dulcineia del Toboso e ostentaria Sintra hoje uma estátua equestre do seu intérpido conquistador, triunfal no terreiro onde outrora chaminés inimigas encobriam os títeres do Formentor.