por F. Morais Gomes

21
Set 11

Havia uma semana que deambulavam pelo Alentejo, apontando a ocidente, Rocinante, acusando o peso de cavalo velho mal se arrastava pela quente planície, enquanto o burrito de Sancho, teimoso, se negava a continuar. Passado o Tejo em barcaça, e pernoitando numa aldeola junto a Sintra, de nome Montelavar, numa estalagem pobre e chã viu o nobre Dom Quixote poderosa mansão de gente da mais fina fidalguia e nos saloios que os acolhiam nobres de farta fazenda, quiçá parentes de algum grande de Espanha. A taberneira, a Aldegundes do Demétrio, estranhou os trejeitos do espanhol e a desconchavada armadura, safava-se Sancho, que travava os ímpetos do amo, tecendo elogio de manjar dos deuses a um prato de torresmos que lhes serviram para matar a fome, enquanto o seu senhor fazia vénias cortesãs à labrega estalajadeira servida de robusto buço, no qual o avisado cavaleiro viu um sinal de nobreza transmitido pelos antepassados.

Alojados na aldeia, ao dia seguinte, refrescadas as montadas, partiram para Sintra, de que muito o cavaleiro da triste figura lera em Crónicas de Fernão Lopes, e onde amiúde se deslocava El-Rey Filipe, agora senhor destes reinos, por herança e direito, a visitar o imponente eremitério dos Capuchos, que um dia comparara ao  portentoso Escorial.

As verdejantes encostas lembravam ao ilustrado cavaleiro a Bretanha dos cruzados, no alto, descortinando o ameaçador castelo de algum infiel califa, fez guarda com a lança, ordenando trote ao Rocinante e atenção ao simplório Sancho. Entrava-se em reino de Mafoma, e apesar de conquistado pelos guardiães do Templo todo o cuidado era pouco, podendo a cada momento de cada várzea surgir um mouro infame, a quem como depositário das tradições de cavalaria deveria trespassar. Sancho sossegava, os povos mais não eram que campónios na faina das hortas, belas maçãs vira, guloso, passadas as terras de Almargem, e farta parecia a vila ao taberneiro feito escudeiro.

Tendo surgido duma eira um saloio em seu jumento, a caminho da Malveira, saudou-o de forma cortêz, destapando a tina de barbeiro que lhe servia de elmo, assim cumprimentando todos os abastados habitantes daquele burgo. Já perto do Chão de Oliva, viu surgir ao caminho uma colareja num burro, Constança Sapa, de seu nome, e queijeira de mister, que vendo os forasteiros almejou vender-lhes deliciosas queijadas. Desconfiado, Quixote mandou que sumisse, mezinhas de bruxa, lhe pareciam. Sancho, guloso, bem quis provar uma mas temendo a fúria de seu amo, calou, deixando a velha praguejando contra os atoleimados castelhanos que assim desdenhavam dos seus  celebrados doces.

À vista das chaminés do Paço, um súbito grito de guerra saiu da boca do velho de La Mancha: ali estavam as vis masmorras do gigante Formentor, de quem lera em trechos do português Castanheda e que tanto vivia no mar como devorador se aboletava nas terras de incautas gentes. Deixando o Rocinante enervado, e relinchando agitado, Quixote deu ordem de investir:

-Ataquemos, fiel Sancho! Frágeis donzelas estão cativas nas masmorras daquele paço! Por Deus e Santiago! À minha ordem, honra e glória!

Já o corajoso libertador investia campos fora, quando assustado o burrito de Sancho lhe atalhou a marcha, evitando o pior:

-Senhor Quixote, Virgem Maria, travai vossos actos que aquele é o paço d’el rey ! Vede o estandarte! Não afrontemos quem é por nós, pois pode a ira de Don Filipe fazer perder-vos em terras de Portugal!

-Sai da frente, leal Sancho, deixa que trespasse o monstro, já azeite a ferver vejo cair de caldeirões pelas muralhas! Vinde, títeres infiéis! A meu ferro, mostrengo desalmado!

A custo, o pançudo escudeiro travou o ataque solitário, por ele ao menos se detivesse em suas iras. Acalmando um pouco, mas não convencido, às ordens do dono o fiel Rocinante deteve a marcha, já soldados da guarda vinham ao caminho a ver quem eram tais temerários forasteiros. O capitão da guarnição, Don Roboredo y Gárzon vendo o perturbado e patético cavaleiro de lança em riste, deu-lhe ordem de prisão, mandando-o desarmar e escoltá-lo até ao paço, onde se apuraria o motivo de desafiador entrar armado na vila reguengueira, e apurar a soldo de quem viajava. Dom Quixote exigiu alguém da sua estirpe, o alcaide-mor ou o estribeiro do rei, sacudindo as mãos dos soldados que o detinham, fez menção de sacar da espada, quando de imediato o imobilizaram no chão como reles salteador:

 -Largai-me infames! Eu sou Don Quixote de La Mancha, Grande de Espanha e da Andaluzia. Levai-me a vosso amo ou um certeiro degredo em Ceuta acalmará vossa insensatez!

O capitão da guarnição, achando o forasteiro perturbado, ordenou que o largassem sem alijar a atenção, em surdina, Sancho inteirava o capitão das visões e febres de seu amo, velho lavrador enterrado em livros pensando ser predestinado cavaleiro andante. Tido enfim por inofensivo, foi deixado em paz, sujo e poeirento, dessedentando-se enfim junto à Fonte da Sabuga. Sintra era definitivamente hostil, volvendo pela estrada que levava a Lisboa, lançou um olhar ao castelo mouro, vociferando despeitado contra o Monte da Lua:

-Por Deus e Santiago, Sancho, em verdade te digo, esta é terra de desalmadas gentes! Sangue turbado de Mafoma! Toma nota do que te digo: breve voltarei, e não me chame Don Quixote da nobre casa de La Mancha ou as chaminés do Demo não demorarão a tombar! Trarei um exército de bravos e prestes o estandarte de Santiago flutuará naquelas vis muralhas!

Regressando pelo cálido Alentejo aos livros e tratados de cavalaria, levou o Cavaleiro da Triste Figura os meses seguintes na soalheira casa em La Mancha, planeando a conquista do insurrecto bastião, que, milenar, lá continuou vendo reis e princesas, e cavaleiros até, dos verdadeiros e de estirpe, porém. Não fossem as aprazíveis atenções da bela Dulcineia del Toboso e ostentaria Sintra hoje uma estátua equestre do seu intérpido conquistador, triunfal no terreiro onde outrora chaminés inimigas  encobriam os títeres do Formentor.


publicado por Fernando Morais Gomes às 19:57

 


Era o regresso ao velho Kiss, em Albufeira, Frederico e os dois amigos, predadores com o cio  depois duma inesperada trovoada e degustadas as amêijoas à Bulhão Pato, caíram na orgia da  noite, líquida e tórrida, intervalada pelo som dos bares da Strip, estival habitat de alcoólicos das Midlands e anafadas  sósias da Susan Boyle. Bruno saíra duma relação com Mila, terminada dias antes de rumar ao Algarve para uns dias com os amigos, a obsessão por engates fortuitos que satisfizessem o ego ferido levava a galar toda a fauna caída na noite, para de manhã, ufano, exibir o triunfo de macho latino, traduzido no intenso cheiro a fragrâncias femininas, activada que fora a testosterona.

Nessa noite, já embalados por umas canecas de providencial cevada, depois duma Maude com sardas, uma Fiona exagerada em rimmel e até uma Carolina, de Beja, que não deram troco, acharam-se à porta do Kiss, já pelas duas da manhã,  onde holandesas aluadas se enfrascavam curtindo o Verão e alguns tugas a raiar o fanfarrão armavam emboscadas à fauna. O Gustavo, já grogue, encostou ao bar, no mais desportivo exercício de levantamento de copos, músicas de verão despertavam os corpos latejantes para a festa dos sentidos, ora entorpecidos, ora acelerados. Bruno logo sumiu, descobrindo-o os outros mais tarde encostado ao balcão enaltecendo os passes de Coentrão com um irlandês perdido na conta das canecas. Para Frederico, já acusando algum cansaço, a miragem duma cama repousante parecia já ser o destino certo duma noite sem presa quando ao som contagiante dum hit dos Duck Sauce se sentiu catapultado para a pista, rodopiando e  libertando os poros, ao som duma música que incensava Barbra Streisand, a madura diva de Holywood tornada tema em recintos de dança. O som entrava-lhe sibilino, sublinhado em voz alta cada vez que o metalizado nome da diva era repetido no psicadélico ambiente do velho Kiss. Desenfiado dos amigos, espalhados pelos balcões e canecas do recinto, deu de repente com uma vaporosa loira frente a si, dançando em jeito de desafio, da qual, desperto e curioso se aproximou, levantando os braços e enlevado cada vez que o nome de Barbra Streisand era evocado no refrão e toada da música dos nova-iorquinos. Numa transição de faixas, foi recarregar baterias ao bar, logo deparando a seu lado com a loira da pista, branca de carnes no seu vestido sem alças, destapando um corpo alvo e favorecido, inequivocamente nórdico. Era uma Helga, de Bergen, directa dos fiordes para a Praia da Oura a curtir o propalado Algarve e o andamento das suas noites, patrulhadas por jovens Camarinhas procurando fazer  jus à famigerada reputação e marcar a portuguese night scene, espécie de Ibiza com boa comida e ainda melhores sandy beaches.

Despachados os clássicos where are from e are you enjoing Portugal, um sofá providencialmente livre deu curso ao prefácio duma história que acreditava agora ir escrever essa noite, e em triunfo acrescentar mais um nome ao seu rol de troféus. Embriagados, Bruno e Gustavo pouco acordo davam de si, haviam começado cedo, abrindo as hostilidades ainda de tarde com caipirinhas na praia, na pista, a onda de clímax facilitava carícias desprendidas e fortuitas entre eles. A tenda estava armada, graças a uma generosa Barbra Streisand do plateau , quando acabasse as férias haveria de pesquisar no Google sobre essa cota que lhe trouxera sorte numa noite já dada por perdida.

Duas horas depois, regressados dum jardim convenientemente escuro e frondoso, cumpridas as juras de amor e promessas de tornar a ver-se, ficava assegurada a amizade luso-norueguesa, confortada que fora com carícias e massagens várias e por certo ainda traumatizada pelos ataques de Oslo. No bar, vitorioso, Frederico rematou uma vodka preta dum trago, iam já as cinco da manhã, entorpecido, Bruno dormia de boca aberta e copo a meio, numa mesa do primeiro andar. Já clareava lá fora quando o DJ de novo electrizou a pista repetindo o sucesso dos Duck Sauce, acordando Bruno e fazendo vir o Gustavo do bar do fundo, onde aos gritos para se fazer ouvir, há duas horas convencia um cambaleante belga da inviabilidade do euro e da União Europeia. Helga saíra já, com amigas, a caminho do hotel. Saciado, Frederico saltou de novo para a pista, gritando “Barbra Streisand” a cada repetição do nome, agora mágica palavra passe para uma inesperada e  proveitosa noite no verão algarvio.

Na tarde seguinte, no apartamento, preparando-se para nova e despreocupada tarde de praia com os amigos, reparou num volume algo enchumaçado no bolso de trás das calças. Sacada a peça, mais não era que o mínusculo fio dental da angelical Helga, a prova de que tudo se passara como recordado, um troféu mais a juntar aos muitos recuerdos de muitas outras noites, sempre culminadas com juras de amor eterno e exclusivo. Com cara de malandro e dando pela coisa, Bruno já recuperado da ressaca, aproximou-se, dando uma palmada cúmplice no ombro do amigo e espicaçando:

-Sim senhora, estou  a ver que não perdeste tempo nem andas a anhar aí pelos cantos, my friend! A quem é que pertence essa relíquia, meu?

Frederico, apertando com as mãos a preciosa peça de lingerie preta, guardou o  galardão na mochila, e saindo para um mergulho na piscina limitou-se a ripostar de forma telegráfica:

-À Barbra Streisand, a quem mais havia de ser?

publicado por Fernando Morais Gomes às 05:25

Setembro 2011
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

15
17

22

25
27
28


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

subscrever feeds
mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO