por F. Morais Gomes

24
Set 11

Caminho. Caminho por Sintra, sabendo ter a serra sempre ao lado, milenar guardiã e larvar berço de lendas e histórias, cadinho de  mouros e cristãos, reis caçadores e intrusivos ingleses, que aí desaguando sonhos e dramas a moldaram, aristocrática e venal, feiticeira e soturna. E lamentando as chagas na pedra e o descuidado património, o renovado  espanto pela confortante descoberta do triunfo do verde, em presépio aninhando casas e palácios, fontes e miradouros.

Sintra tem ritmos e matizes, surpresas e ilusões. Suburbana na cacofónica Portela, de alunos para as escolas e funcionários para os serviços, senhoras para as compras e reformados para o jardim, e também de agrilhoados contribuintes arrastando-se para as Finanças, utentes esperando uma licença do urbanismo ou contando os tostões para pagar a água cortada pelos SMAS. Subo a rampa da Portela, fugindo da selva de intrusivos carros e denodados arrumadores, e desço ao burgo, deixando atrás os anzóis do Brancana e as apólices do Catarino, e a garagem, agora azul, depois dum passado negro, a Ideal e o prateado Faria. É a zona mista,  a fugir ao subúrbio e antes ainda da old town, já skaters invadem a Estefânea da Marrazes e Simões, boticários veteranos, do Tirol e Monserrate, seus cafés e galões, e dos chineses dos tupperwares e das pilhas, dos guarda-chuvas e velas. E dos bancos, torpes casas de usura, antro de predadores cobradores dos fracos.

O velho Carlos Manuel do povo fechou já, aristocrático vestiu roupa nova, casa de ópera e Cadaval na desaparecida plateia de filmes a cinco escudos, do John Wayne e Cantinflas. E também do teatro novo em Sintra, de Maria João Fontaínhas e Alvim, operários da cultura e das artes, em levado tempo em que se podia sonhar. Também o casino fechou,  sinuosa roleta o entregou em tempos a um coleccionador do vil metal, desnorteado esqueceu já velhos tempos e é pálido o amarelo das fachadas, fechadas hoje  a maior parte do tempo.

Volvo ao trilho da vila, chamado pelo silvar ventoso e perfumado do verde selva, a caminho, lá está burguesa a Correnteza, miradouro e varanda, parapeito de amores e de pombos, perto passa o comboio, do Larmanjat ninguém já lembra, ondulante e inseguro. Como sempre, chegam turistas e mirones, gentes e vidas, a descobrir o éden terreal. E estrada abaixo, respirando fundo, sulco o Vale da Raposa, saudando os familiares passantes, rostos de muitos anos, baptizados e funerais, festas do cabo e da vila, cúmplices envelhecendo com a serra sempre ao lado, previsivelmente fria no Inverno e também fresca no Verão, o verão de Sintra, cacimbado e nebuloso.

Aproximo-me do burgo ao som cadente dos cavalos, pretérita lembrança de reis e burgueses, dos Maias e Calisto Elói, do Garrett e do Zé Alfredo, de Anjos Teixeira e M.S.Lourenço. Vernacular, o torreal município é sua porta de entrada e fronteira, e o leão de pedra o guardião, palpitantes, aceleram-me os sentidos à vista da miríade encantada, a curva do Duche e o odor canelado da Sapa, o Valenças e as solarengas mansões , a água jorrando cristalina da  exótica fonte mourisca. E o Grande Maior, da feiticeira Llansol, as camélias de Nunes Claro, e o fantasma a cavalo do Carvalho da Pena, guardião do Jardim, à noite solitário patrulhando as veredas,  druida da serra e dos lagos.

Ofegante chego enfim à vila, refúgio da utopia e altar sagrado de poetas, lusitano reino dum palpável Parnasso. Não os vejo, mas ouço, rostos da Sintra de hoje, ouço a Maria Almira, o Rui Mário, o Jorge Menezes, jovens e generosos actores de várias gerações, danças medievais e bailes das camélias, os vitoriosos patins do hockey de Raio e Cipriano. E guloso, mergulho nos segredos do açúcar, das Periquitas e Sapas, dos Gregórios e Matildes, orgia do paladar à sombra tutelar do Paço.

Apurados os sentidos, esperguiço-me na escadaria, e hipnotizado fixo o castelo, invisíveis ogres lançam caldeirões de azeite e catalépticas bruxas invadem a noite em vassouras, invisíveis, lancinantes, chegam a mim os passos de Afonso VI prisioneiro, e o ecoar das festas joaninas, um amargurado Camões lendo para um jovem rei alucinado, e a condessa d’Edla e Viana da Mota, acorrendo ao repicar festivo do sino em S. Martinho.

Invisíveis faunos e visíveis heróis, todos chegam à escadaria onde até ali matutei sozinho, a um chamamento prestes tomam lugar no camarote dos tempos, incensados e perdidos, esperançosos e idealistas. Sintrenses. E a serra e o castelo, as chaminés e as fontes, em eterna reconciliação, a todos abraçam no grande festim da noite, à sombra segura da argêntea Lua.

publicado por Fernando Morais Gomes às 21:07

Xian, vale do Wei, província de Shaanxi, na antiga Rota da Seda. Com uma bolsa de estudo para aprofundar os estudos de arqueologia, Gilberto chegava à China para seis meses de investigação sobre o antigo Império do Meio. Depois do transfer em Beijing, mais de doze horas após a partida de Frankfurt, era o mergulho na China Central, numa cidade milenar onde o progresso chegara de rompante com a silenciosa revolução de Deng Xiaoping, o Pequeno Timoneiro, que suavemente enterrara a herança de Mao.

Instalado num hotel para estudantes, muitos da Manchúria e Guangzhou, a tradicional delicadeza dos chineses, sobretudo os de etnia han, facilitou a integração. Só ao segundo dia se apresentou na Universidade, onde o professor Siu o aguardava já, tal como a Vitautas, um lituano que com Gilberto colaboraria nos estudos sobre civilizações antigas.

Xian fora um centro cultural no século XI A.C com a fundação da Dinastia Zhou, quando a capital foi estabelecida em Fēng, um pouco a oeste da cidade actual. Após o período dos Estados Combatentes, a China foi unificada durante a Dinastia Qin, com a capital em Xianyang, um pouco a noroeste da actual Xian. Foi o primeiro imperador da China unificada, Qin Shihuang quem ordenou a construção do famoso exército de terracota e seu futuro mausoléu pouco antes da sua morte,aí seria o centro principal das actividades de Gilberto sob orientação do professor Siu, o arqueólogo-chefe.

Era um ambiente agradável, com as montanhas Qinling a sul e o rio bordejando a cidade, chegado no verão não foi sem surpresa que foi recebido por algumas trovoadas. Jovem e movimentada, a cidade era atractiva, e a comida saborosa, no centro, modernas discotecas de música alternativa ofereciam um panorama com que não contava tanto, preferindo contudo os tradicionais espectáculos de ópera qinqian.

Para um arqueólogo, a cidade era um manancial: os túmulos dos reis da dinastia Zhou, mausoléus e tumbas da dinastia Han,  algumas com esculturas de soldados de argila, eram contudo as figuras em terracota enterradas junto ao mausoléu do primeiro imperador Qin Shihuang, entre 259-210 A.C., o que mais  atraía. Visitando o local, a gravidade e aspecto marcial daqueles guerreiros enterrados transportaram-no para essa época distante, quase podendo ver os mesmos deslocando-se marciais pelo planalto central, às ordens de Qin. Entusiasta, o professor Siu contava a história, o trabalho do grupo agora chegado seria a abertura de nova vala a noroeste da actual, onde se supunha estar outra secção do vasto exército enterrado, pelo que logo no dia imediato, convenientemente vestidos e equipados, partiram para o local, quais Indiana Jones mal podiam esperar até escavar o primeiro metro de terra. A construção do mausoléu começara em 246 a.C. e acredita-se que foram precisos mais de setecentos mil trabalhadores e artesãos  para o completar ao longo de quarenta anos. De acordo com o historiador Sima Qian, o imperador fora enterrado em 210 a.C,  juntamente com tesouros e objectos artísticos, bem como com uma réplica do mundo onde pedras preciosas representavam os astros, pérolas os planetas e lagos de mercúrio os mares.

Durante os primeiros dias, nada senão terra e raízes surgiam do árido terreno, trovoadas frequentes obrigavam a interromper os trabalhos, aos poucos, a rotina obrigava a serenar os ímpetos de grandes descobertas no imediato. A tumba ficava perto de uma pirâmide de terra com 47 metros de altura e 2 quilómetros quadrados de área e o medo de erosão provocada pelas chuvas obrigava a especiais cuidados, pois a terracota era literalmente terra, cozida em fornos a baixa temperatura. Após cozer cada figura, ela era então coberta com uma camada de laca, para lhe aumentar a durabilidade. Mais de oito mil figuras haviam sido escavadas até esse momento, incluindo soldados, arqueiros e oficiais, todas em poses naturais. Para Gilberto e restante equipa, contudo, nada de vestígios novos a noroeste, talvez os estudos do professor Siu estivessem errados.

Já ao fim de dois meses, jantando um pato lacado no hotel de estudantes, numa noite em que chovia copiosamente, o empregado da recepção, conhecedor dos motivos da vinda do português à China, chamou-o de parte, e, pedindo silêncio, sugeriu-lhe que cavassem quinhentos metros a sul, exemplificando com um desenho. À pergunta da razão de tal convicção,  o jovem nada disse, e voltou para o seu portátil. Gilberto ficou intrigado, por mera curiosidade nessa noite foi passear na zona indicada, mas haviam apenas arbustos e nem sequer continuação física com o mausoléu. Pelo sim pelo não, no dia seguinte sugeriu ao professor uma deslocação para sul, o que ele rejeitou, todos os indícios apontavam a noroeste. Mas o rapaz do hotel deixou Gilberto intrigado, e nos dias seguintes foi metendo conversa com ele. Chamava-se Qin, tinha vinte anos e para além do hotel,passava o tempo criando jogos de estratégia militar no computador, sobre a “dica” sugerida nada mais adiantou. Movido pela curiosidade, desafiou Vitautas a escavarem por conta própria durante as férias no campus, com o professor ausente em Xangai num simpósio arqueológico. Três dias insistiram, escavando, até que uma cabeça, semelhante às já conhecidas, emergiu da terra onde estava soterrada, as armas e armaduras reais utilizadas esculpidas no corpo, não deixavam dúvidas: era um novo guerreiro, logo seguido de outros, uma nova ala, regressado o professor, atónito, continuaram nessa zona a sul, até que um novo núcleo de guerreiros ficou exposto, catapultando o português e o lituano para a história da arqueologia.

Alinhadas no fosso sul as novas peças, quase todas em bom estado, Gilberto, Vitautas e o professor Siu posaram junto a elas semanas depois para uma equipa do National Geographic, repórteres da CCTV da China não largavam o português, herdeiro de Carter, o descobridor de Tutankamon, satisfeito, Gilberto saboreava. No momento em que terminava a foto ao lado dos novos guerreiros, olhando o da sua direita, a cara deste, por sortilégio, ganhou vida, olhando-o sorridente e altivo. Passada a estupefacção, a cara pareceu-lhe familiar. Era Qin, o recepcionista do hotel, que sem que os outros o pudessem ver, piscava o olho a Gilberto, aprisionado na estática e milenar farda de guerreiro em terracota. Qin Shihuang, fundador da dinastia Qin, por razões inexplicáveis renascido dos mortos e à cabeça do seu exército imperial emergido das estranhas da terra.

publicado por Fernando Morais Gomes às 07:17

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