Caminho. Caminho por Sintra, sabendo ter a serra sempre ao lado, milenar guardiã e larvar berço de lendas e histórias, cadinho de mouros e cristãos, reis caçadores e intrusivos ingleses, que aí desaguando sonhos e dramas a moldaram, aristocrática e venal, feiticeira e soturna. E lamentando as chagas na pedra e o descuidado património, o renovado espanto pela confortante descoberta do triunfo do verde, em presépio aninhando casas e palácios, fontes e miradouros.
Sintra tem ritmos e matizes, surpresas e ilusões. Suburbana na cacofónica Portela, de alunos para as escolas e funcionários para os serviços, senhoras para as compras e reformados para o jardim, e também de agrilhoados contribuintes arrastando-se para as Finanças, utentes esperando uma licença do urbanismo ou contando os tostões para pagar a água cortada pelos SMAS. Subo a rampa da Portela, fugindo da selva de intrusivos carros e denodados arrumadores, e desço ao burgo, deixando atrás os anzóis do Brancana e as apólices do Catarino, e a garagem, agora azul, depois dum passado negro, a Ideal e o prateado Faria. É a zona mista, a fugir ao subúrbio e antes ainda da old town, já skaters invadem a Estefânea da Marrazes e Simões, boticários veteranos, do Tirol e Monserrate, seus cafés e galões, e dos chineses dos tupperwares e das pilhas, dos guarda-chuvas e velas. E dos bancos, torpes casas de usura, antro de predadores cobradores dos fracos.
O velho Carlos Manuel do povo fechou já, aristocrático vestiu roupa nova, casa de ópera e Cadaval na desaparecida plateia de filmes a cinco escudos, do John Wayne e Cantinflas. E também do teatro novo em Sintra, de Maria João Fontaínhas e Alvim, operários da cultura e das artes, em levado tempo em que se podia sonhar. Também o casino fechou, sinuosa roleta o entregou em tempos a um coleccionador do vil metal, desnorteado esqueceu já velhos tempos e é pálido o amarelo das fachadas, fechadas hoje a maior parte do tempo.
Volvo ao trilho da vila, chamado pelo silvar ventoso e perfumado do verde selva, a caminho, lá está burguesa a Correnteza, miradouro e varanda, parapeito de amores e de pombos, perto passa o comboio, do Larmanjat ninguém já lembra, ondulante e inseguro. Como sempre, chegam turistas e mirones, gentes e vidas, a descobrir o éden terreal. E estrada abaixo, respirando fundo, sulco o Vale da Raposa, saudando os familiares passantes, rostos de muitos anos, baptizados e funerais, festas do cabo e da vila, cúmplices envelhecendo com a serra sempre ao lado, previsivelmente fria no Inverno e também fresca no Verão, o verão de Sintra, cacimbado e nebuloso.
Aproximo-me do burgo ao som cadente dos cavalos, pretérita lembrança de reis e burgueses, dos Maias e Calisto Elói, do Garrett e do Zé Alfredo, de Anjos Teixeira e M.S.Lourenço. Vernacular, o torreal município é sua porta de entrada e fronteira, e o leão de pedra o guardião, palpitantes, aceleram-me os sentidos à vista da miríade encantada, a curva do Duche e o odor canelado da Sapa, o Valenças e as solarengas mansões , a água jorrando cristalina da exótica fonte mourisca. E o Grande Maior, da feiticeira Llansol, as camélias de Nunes Claro, e o fantasma a cavalo do Carvalho da Pena, guardião do Jardim, à noite solitário patrulhando as veredas, druida da serra e dos lagos.
Ofegante chego enfim à vila, refúgio da utopia e altar sagrado de poetas, lusitano reino dum palpável Parnasso. Não os vejo, mas ouço, rostos da Sintra de hoje, ouço a Maria Almira, o Rui Mário, o Jorge Menezes, jovens e generosos actores de várias gerações, danças medievais e bailes das camélias, os vitoriosos patins do hockey de Raio e Cipriano. E guloso, mergulho nos segredos do açúcar, das Periquitas e Sapas, dos Gregórios e Matildes, orgia do paladar à sombra tutelar do Paço.
Apurados os sentidos, esperguiço-me na escadaria, e hipnotizado fixo o castelo, invisíveis ogres lançam caldeirões de azeite e catalépticas bruxas invadem a noite em vassouras, invisíveis, lancinantes, chegam a mim os passos de Afonso VI prisioneiro, e o ecoar das festas joaninas, um amargurado Camões lendo para um jovem rei alucinado, e a condessa d’Edla e Viana da Mota, acorrendo ao repicar festivo do sino em S. Martinho.
Invisíveis faunos e visíveis heróis, todos chegam à escadaria onde até ali matutei sozinho, a um chamamento prestes tomam lugar no camarote dos tempos, incensados e perdidos, esperançosos e idealistas. Sintrenses. E a serra e o castelo, as chaminés e as fontes, em eterna reconciliação, a todos abraçam no grande festim da noite, à sombra segura da argêntea Lua.