Emília fora despedida, com o marido entrevado depois duma queda da grua e um filho autista, não se podia dizer que a vida lhe sorrisse. Ainda jovem, depositara esperanças em ser professora, desiludida, terminara numa fábrica, fazendo um trabalho rotineiro e mal pago. A fábrica faliu, deixando salários por pagar e contas a acumular. Moravam em Lourel, aziaga terra entre dois cemitérios, como costumava dizer em momentos de depressão. Ainda se lhe saísse o Euromilhões! Jogava todas as semanas, mas a sorte nunca lhe sorrira.
Naquela sexta-feira, jogou os seis euros do costume no café do Baptista e seguiu para casa. No dia seguinte ao sorteio buscou no jornal a chave premiada, geralmente origem de nova decepção, mas ao procurar pelo registo, não o encontrou. Cartões, facturas para pagar, o passe, nada! Deixá-lo, não iria sair, de qualquer forma. Lembrou-se que tinha apostado em números seguidos, 6-7-8-9-10, e nas estrelas, no 4 e no 5. Conferindo a chave, os números premiados eram 6-7-8-9-10 e as estrelas o 4 e o 5, a televisão anunciava haver apenas dois premiados, um em Portugal, outro na Bélgica, cinco milhões para cada um.Emília quase teve um enfarte! Eram os seus números! Voltou a casa, e esvaziou a mala, a carteira, as gavetas, até o contentor do lixo. A sorte passara à porta e jamais veria o dinheiro que mudaria a sua vida.
No dia seguinte, Dia de Todos os Santos, como manda a tradição,rebanhos de miúdos ruidosos de saco de pano na mão, correram as casas pedindo Pão por Deus, na busca da romã, língua-de-gato ou chocolate que os vizinhos oferecessem, como acontecia de geração em geração. De porta em porta, os mais velhos guiavam os mais pequenos, tocando as campainhas e repetindo a cantilena que abriria as portas naquela espécie de Natal antecipado. Pão por Deus! Pão por Deus!
Filipe, com o Joãozinho pela mão foi também, a mãe deixara, na condição de não irem para longe e estarem em casa ao meio-dia. Com o saco quase cheio, bateram à porta da Emília, mais três casas e terminariam.
-Pão por Deus! –iam gritando, com os os cães a ladrar à passagem daquela desusada procissão.
Ainda em choque com a história do Euromilhões, Emília queria sossego, e muito menos estava com paciência para miúdos:
-O que é que querem daqui? Julgam que isto é a Mitra? Tomara eu ter para mim, quanto mais para vocês estragarem. Os vossos pais que vos aturem! –reclamou, mal-humorada. E se não se vão já daqui embora, largo-vos o cão, vão ver!
-Pronto, minha senhora, vamos já embora!
À saída do quintal, Joãozinho deu com os olhos num papel branco caído atrás dum vaso. Na inocência dos seus oito anos, não percebeu o que era, e chamou a Emília, que estava ainda à porta, esperando que fechassem o portão do quintal.
-Oh minha senhora. Quer que lhe ponha este papel no lixo?
-Qual papel? Ainda aí estão? Com um raio, nunca mais se vão embora! –arengou, impaciente.
-Isto! -e correu a entregar-lhe o papel achado junto ao vaso.
Milagre de todos os santos! Era a premiada chave do Euromilhões, os cinco milhões da felicidade. De olhos esbugalhados, Emília soltou um grito emocionado:
-Virgem Santíssima! Ai meu Deus, que me dá um enfarte! Alberto! Alberto!
Joãozinho não entendeu a algazarra, a mulher não só não lhes dera nada, como era maluca, pensou, e afastou-se para ira ter com o irmão, a volta do Pão por Deus estava quase completa.
Junto à porta, Emília abraçou o marido, tanto ria como chorava, num chorrilho de emoções incontroladas. Vendo que o pequeno sumia na esquina, correu no seu encalço:
-Ó filho, vem cá, não te vás embora!
Deu-lhe dois beijos lambuzados e correu à cozinha, donde três pacotes de bolachas e um Toblerone voaram para o saco, repentinamente pequeno-E para a semana vem cá ter comigo sem falta, ouviste? Já tens Playstation?
Maria Emília mora agora numa vivenda em Colares, com um jardim tratado pelo senhor Isidro. O marido montou um negócio, foram de férias às Canárias e o pequeno Tiago anda agora numa escola de educação especial. O resto do dinheiro, é para assegurar o futuro.
Um pequeno papel branco pode mudar o papel de muitas vidas. Para o ano, e por alguns anos ainda, lá estará o pequeno João com o seu saco de pano, patrulhando as casas daqueles pais natais sem barba branca, enchendo o saco de línguas-de-gato e rebuçados coloridos, proferida que seja a palavra mágica: Pão por Deus!