por F. Morais Gomes

30
Nov 11

O momento era solene na Quinta do Espingardeiro. Sua Alteza Real El-Rei D.Duarte II, novo rei de Portugal, recebia os conjurados que o haviam restaurado na Coroa depois dos extraordinários eventos daquela manhã.

Assinalando-se como de costume a romagem do 1º de Dezembro, grupos monárquicos haviam convocado para esse dia e através do Facebook e SMS uma manifestação contra o regime no Terreiro do Paço em  protesto contra a degradação das instituições e do prestígio do país. Bloggers do 31 da Armada, João Braga, Paes do Amaral, Paulo Teixeira Pinto, entre outros, estavam entre os promotores e cedo se juntaram no local onde em 1908 o saudoso rei D.Carlos fora assassinado por cobardes carbonários.

Habitualmente discreta e pouco participativa, desta vez muita juventude marcava presença, descontente com o estado das coisas, afinal os melhores anos de glória nacional foram sob a égide de reis e em novecentos anos oitocentos haviam sido em monarquia.

Rápido alguns milhares acorreram em apoio.O fadista João Braga, usando da palavra ,incitava contra os corruptos e vendilhões da Pátria, momento em que um grupo mais determinado apelou a que se restaurasse a monarquia no país. Inflamados e fugindo ao controlo dos poucos policias destacados, marcharam até à fragata Corte-Real, ancorada em Alcântara, onde em dia de folga só o oficial de dia e alguns marinheiros permaneciam. Invadindo a mesmo e aprisionado o pobre tenente de serviço, fuzileiros veteranos à paisana apoderaram-se do navio e do paiol, para gáudio da populaça,com  nacionalistas e skinheads à mistura, bem como alguns noctívagos pouco antes vindos duma noite nas docas, conduzindo o amotinado vaso de guerra para Belém, onde  via rádio e já frente ao palácio presidencial contactaram o Estado Maior da Armada.Mal este imaginava que vinha aí um 31…

Enquanto grupos civis cortavam os acessos a Belém e S.Bento e as saídas dos cacilheiros e metro, os do Corte- Real ameaçavam com fogo sobre o Palácio e exigiam a rendição do Presidente da República. Este encontrava-se na residência da R. do Possôlo, ironicamente acabando uma fatia de bolo-rei... O Chefe da Casa Militar tentava parlamentar com os revoltosos, enquanto o presidente era evacuado para a Base Aérea nº1, em Sintra.

Entretanto,Paes do Amaral, conde Cantanhede ia-se desdobrando em contactos com a comunicação social, captando apoios e tempos de antena, a CNN ,alertada, tinha já um correspondente no terreno. D.Duarte, que se encontrava tranquilamente a beber um café na Natália, em S.Pedro,pelo telemóvel ia sendo informado do curso dos acontecimentos.

O ministro Relvas, informado pelo telefone, ameaçava com a força militar. A Armada ainda tentou accionar o novo submarino, o Tridente, mas este tinha o pessoal ainda em formação e nunca fizera tiro real. Os Comandos, surpreendidos, não tinham operacionais ou artilharia, estava tudo no Kosovo e Afeganistão.

Pelas quatro horas, os conjurados com o apoio de forças civis invadiram o  Palácio de Belém, apeando a foto de Cavaco Silva e içando a bandeira azul e branca. Uma proclamação ao país circulava já nos SMS e no Facebook. Mais bandeiras azuis e brancas se multiplicavam agora nas ruas da Baixa e no  mastro do Castelo de S. Jorge.

Às cinco horas, sem tropas ou apoios e sem derramamento de sangue,caía a III República implantada a 25 de Abril de 1974.As redes sociais estavam entupidas e os telemóveis saturados,o Hino da Carta era o vídeo mais visto no You Tube.

Por essa hora, na casa de Sintra, D.Duarte recebia uma delegação de conjurados que em exaltação patriótica o proclamaram legítimo herdeiro do trono gritando real por el-rei de Portugal. Ainda atónito e rodeado de Isabel Herédia e dos filhos, aceitou o pesado fardo que o povo português, nação de gente boa lhe pedia, e em cortejo trunfal partiu para a Ajuda num UMM blindado, escoltado por motards e campinos a cavalo.O bisavô D.Miguel, derrotado em Évoramonte exultaria por certo lá onde estivesse.

Na sala do trono no Palácio da Ajuda logo as forças armadas prestavam lealdade ao novo monarca, enquanto as chancelarias europeias mandavam felicitações, quase todas monarquias por sinal, os primos da Holanda, Juan Carlos,Alberto II,Beatriz, tudo família.

Dirigindo-se da janela ao povo eufórico que aos milhares ali se juntara e envergando o manto branco que pertencera a D.Carlos, o novo rei prometia democracia e pluralismo ,respeito pela tradição e julgamentos isentos para os derrotados, seria um monarca constitucional e moderno. Frente à multidão inflamada,uma banda no final tocou o Hino da Carta. Os Braganças estavam de volta.

Depois, as primeiras medidas: a extinção da Guarda Nacional Republicana substituída pela Guarda Real, a convocação de Cortes, a nomeação dum governo, chefiado por Paulo Teixeira Pinto. A aclamação oficial de D.Duarte II ocorreria na Sé um mês depois, perante o clero, a nobreza, e os parceiros sociais.

Ainda nessa noite, o deposto presidente Cavaco Silva partiu para o exílio em Lanzarote, ficando com residência fixa numa vivenda onde outro português já morara. Perturbado, ao embarcar  falava sozinho e soltava frases sem sentido, como alimentar o monstro e violar e-mails.O ex-primeiro ministro Passos Coelho, ameaçado com prisão se regressasse, ficou pela Guiné, onde visitava a família da esposa, onde lhe foi oferecido um lugar numa empresa de Ângelo Correia. Nas ruas, o povo exultava, grupos de forcados de Salvaterra e ganadeiros de Alter acorriam a celebrar o novo rei, agora  reinstalado e não mais embuçado. Uma corrida à antiga portuguesa celebraria com pompa a entronização, a velha nobreza, os marialvas estavam vingados.

Refreadas as emoções desse dia histórico, havia que retomar a administração da coisa pública. Três dias depois, Conselho de Ministros das Finanças da UE em Bruxelas. O novo ministro, agora rebaptizado da Fazenda, o marquês da Amareleja, muito cumprimentado pelos outros colegas ouvia o plano de resgate para a economia portuguesa: liberalizar os despedimentos, tirar mais 3% suplementar aos vencimentos, privatizar toda a segurança social. Desolado, pedia tempo para o novo regime atacar os problemas e dar a volta à trapalhada herdada dos republicanos, ainda estavam em estado de graça. Sorumbáticos, os colegas negaram, monarquia ou república   estavam ali para resolver problemas a sério e não para reinar….

publicado por Fernando Morais Gomes às 20:35

22
Nov 11

Manhã cinzenta e ventosa, alheia, a serra eléctrica empunhada por vulto amarelo e vermelho avançava segura para a execução da sentença: o abate. Culpadas de antiguidade, de folhagens invasivas, de suspeitas alergias, demasiadamente verdes e roubando espaço aos carros, esses novos habitantes, formigueiros e anacrónicos buscando espaço na Vila.

D.Ermelinda, chegando à janela onde o Tareco já se instalara vendo a agitação, ainda no roupão coçado e rolos no cabelo, apressou-se a aplaudir:

-Já não era sem tempo! Estas árvores só fazem é moléstia! Ó sr.Arlindo, ainda a semana passado caiu aqui uma ramagem que me partiu um vaso da varanda!- comentou para o Arlindo do talho, que chegando à porta assistia às manobras, um segundo carro ia recolhendo os galhos logo transformados em serradura.

-Isto queria era tudo abaixo, menina Ermelinda!- sentenciou o talhante para a velha solteirona. E se fossem todas, não se perdia nada, que o que faz aqui falta é estacionamento! -acrescentou, antevendo já mais dois ou três lugares para os clientes, que assim, mais comodamente encostariam a comprar bifes e enchidos das melhores proveniências.

Um plátano e duas tílias, sentinelas de décadas perfumando a Vila, tombaram em meia hora. Desolada, a rua deixava a descoberto rachas e mazelas no velho casario, que a sombra e porte das malogradas árvores escondiam, a cúpula dos paços do concelho via-se agora nitidamente, enquanto os homens de amarelo e vermelho avançavam para a rua seguinte.

Sempre atento, chegou entretanto Pedro Nogueira. Jornalista aposentado, dedicava-se agora a um blogue que criara para denunciar situações destas. Sintra ia soçobrando de ano para ano, sob a ameaça do cutelo, só ele e um punhado mais se interessavam por manter as árvores, no mínimo que se explicassem razões, ouvissem os moradores, uma vez mais os burocratas do machado levavam a melhor.Junto do suposto chefe quis apurar motivos:

-Desculpe lá, amigo, quem ordenou o abate destas árvores? Trabalham para quem?

Um gordo com ar boçal e bigode farfalhudo, olhando de soslaio e  medindo-o de alto abaixo, escarrando para o lado, despachou o Nogueira com ar de quem não tem de dar explicações:

-Isto é ordem da Câmara! Está tudo podre, não vê? Olhe, esta aqui mais uma semana e era capaz de cair em cima do telhado ali!- rosnou, apontando o prédio da Ermelinda, onde o gato, o  Tareco, se instalara para assistir às operações- Eu aqui só cumpro ordens, mas por mim iam todas, isto só faz é lixo!- rematou, afastando-se a dar ordens a um brasileiro que do alto da grua ia decepando a tília lentamente.

Pedro ia tirando fotos, chegariam tarde, mas mostrariam a execução antes do trânsito em julgado da sentença. Chegado o Rodrigo, dum grupo ambientalista, tentou ainda demover do abate. Nada a fazer, era uma empreitada, quando mais rápido melhor, a ver se a Câmara pagava antes do Natal. Com a crise, este trabalhito vinha a calhar, havia que despachar.

-Então e é para plantar aqui o quê, agora?- sondou Rodrigo, mandando SMS para vários lados.

-Isso já não é connosco. Por mim, nada. É alcatroar e limpar. Não acha que já há árvores a mais? Não lhe chega a serra, cheia de secos e matagal? Também é desses amigos das florzinhas?- desdenhou o capataz, ordenando a progressão para a árvore seguinte. Queixem-se ao Totta, que eu a mim tanto se me dá!

A meio da manhã um descampado nu e desolador deixava expostas as portadas em ruínas da casa da Ermelinda. O Fidélio do café ainda sondou um dos homens, tentando levar lenha para casa, secaria no telheiro. Analisando o tronco viril e de decénios, nada denunciava as supostas doenças. Pedro ia recolhendo provas da execução sumária, meneando a cabeça, posto que se ia consumando a purga. Fotos dos troncos mostravam que mais uns anos durariam por certo:

-É o que dão as obras mal feitas, amigo Pedro!- consolou o Rodrigo, a preparar um comunicado de repúdio da sua organização. Enfiam-se manilhas, cabos, ferem-se as raízes, e depois fica fácil justificar os abates. É este o país que  temos!- rematou, colando-se ao telemóvel.

A chuva engrossava. Com o chá ao lume, a Ermelinda voltou para a cozinha, o Tareco ronronando junto às pernas, o Arlindo voltou para o talho a aviar dois frangos para a D.Lurdes da retrosaria, chegando  o meio dia, os da serra partiram para o ritual almoço, ritmado pela sirene dos bombeiros soando ao longe. No dia seguinte, cantoneiros da Câmara replantariam com granito o sítio onde durante anos floresceram árvores, agora só guardadas na sépia dos postais, ou na objectiva revoltada do Pedro. Felizmente para a Ermelinda, não teria de se preocupar mais com o anti-alérgico de sete euros, respiraria agora ar puro e a luz, acolhedora invadiria o saguão para felicidade do Tareco, já velho de sete vidas, Em S.Martinho, as doze badaladas pontuavam o dia, malogradas, as árvores não morreriam de pé.

Foto do blogue Rio das Maçãs

publicado por Fernando Morais Gomes às 11:21

12
Nov 11

Sintra, 1941. Nos baixos da casa na R. da Pendôa, Júlia, ansiosa e a medo, aguardava como diariamente a chegada de Alfredo, empregado na loja de tecidos do Wenceslau e seu almejado noivo. A custo, o pai, Adolfo Saraiva, aceitaria o rapaz, bem parecido e avançado na equipa do Sintrense, mas de famílias humildes, sem cabedal para a sua fortuna, feita em África e na exportação de volfrâmio para a Alemanha. A casa em Sintra, herança do avô Ladislau, era o centro de onde Adolfo dirigia os seus negócios, que um dia Júlia, filha única, herdaria, havia pois que acautelar genro ponderado e à altura. Um doutor em Leis, era o que vinha a calhar para a Julinha, moça frágil e prendada, viciada na leitura. Até o Zé Alfredo do tribunal lhe gabara os dotes para as letras, se o pai deixasse, falaria ao Medina do Jornal de Sintra, para lhe editar os poemas, o Saraiva, contudo, não queria a filha exposta a comentário alheio, e sempre se negou. Dezanove anos completos,  noções de francês e bordados, era a altura de lhe dar netos e assegurar os negócios, o filho do dr. Claudino, tenente da Academia, esse sim, era um homem de respeito, leal ao doutor Salazar, uma farda na família adornaria a fortuna feita em África numa aliança natural e abençoada por Deus.

Júlia conhecera Alfredo na loja de tecidos, certo dia que lá fora comprar chita para um vestido. Os olhos verdes de Alfredo e o penteado ondulante e vistoso, levaram-na para casa a suspirar pelo jovem. O pretexto para o ver repetiu as visitas à loja, uma mão quente sobre a sua certo dia deixou escapar rubores, logo um furtivo beijo atrás da cortina das provas. Era ele agora quem fechada a loja corria para a vila, para fugidios acenos por trás da cortina da casa de Júlia.

Sem nada suspeitar,certo dia Adolfo Saraiva convidou os Claudinos para um jantar, o velho advogado e esposa, e o garboso filho, o tenente Rodolfo, instrutor em Mafra e promissor oficial, partiria em breve para um tirocínio em Berlim. Júlia, afável, recebeu-os, Adolfo criando motivos para os filhos de ambos se aproximarem, na despedida, beijando-lhe a mão, Rodolfo, formal,  convidou-a para um passeio na Pena. Júlia anuiu, surpresa, mal suspeitando que o tenente lhe queria fazer a corte. Educadamente, tentou repeli-lo, informado o pai, este insistiu que não negasse, era a oportunidade da vida dela, um marido à altura e boas famílias. Ficou destroçada.

Sabedor dos planos, Alfredo jurou-lhe que ficariam juntos, nem que tivessem de fugir, tinha tios no Brasil. Passados dois meses, obteve passagens num paquete, fugiriam em segredo numa noite de Fevereiro.

No dia aprazado Alfredo juntou uma trouxa e os bilhetes, e discretamente zarpou para Sintra na bicicleta do irmão. Angustiado, na Volta do Duche, mal reparou num cão que se lhe atravessou, caindo desamparado com a cabeça na laje, teve morte imediata, as duas passagens no paquete saltando do bolso, para ele nem de ida seriam.

Foi por Amália, a criada, que soube da notícia, um grito suspeito e estranho para a serviçal, antecedeu uma correria para o quarto, em desespero libertando lágrimas por um futuro perdido e incerto.

Nos dias seguintes, para espanto da família, fechou-se no quarto, ao tenente Rodolfo passou a evitar, o doutor Simplício receitava caldos de galinha e sol da praia. Júlia definhava, amordaçada pelo segredo de um amor desfeito, condenada a ver-lhe fugir a felicidade, fechada no quarto frio escutando as badaladas em S.Martinho.

Os anos passaram. Com o tempo dedicou-se a causas filantrópicas, a morte do velho Adolfo deixou-a respirar, ficara só, mas consigo mesmo, as noites de insónia povoadas pela imagem de Alfredo, o noivo improvável que um destino quis impossível. O tenente Rodolfo casou com uma francesa, por alturas da revolução de 74 e já general foi compulsivamente aposentado, morreu nos anos oitenta.

Sintra foi-lhe  vendo passar os anos, imutável, petrificada como ela, moira encantada no castelo possível da velha casa na R. da Pendôa. Uma sobrinha tomava conta dela no ocaso da vida, reiterada e secretamente uma flor cobria ritualmente a campa de Alfredo em S.Marçal, breve se lhe juntaria, e aí sim, nenhum poder efémero e castrador os poderia separar.

Alice, a sobrinha, igualmente solteirona, suspeitava dum passado encarcerado naquela tia que só aos sessenta conheceu. Júlia lia, pintava da sua janela, captando nostálgica as patines de Sintra, os nevoeiros e brumas, Alfredo dentro delas por certo, na bicicleta. Já passados os oitenta, chamou Alice, indicando-lhe uma gaveta no psyché revelou estarem ali as suas últimas vontades, e num armário que só no dia da sua morte seria aberto, a roupa com que seria amortalhada.

Uma madrugada fria de Novembro de 2011, deitada na cama da velha casa de Sintra, sentiu uma bicicleta rolando lenta no lajedo exterior, um assobio familiar não lhe deixou dúvidas, sorriu, e partiu enfim com Alfredo, que sorria, os amarelecidos bilhetes para o paquete na mão. Alice encontrou-a serena e em paz, quando pela manhã a viu inerte e em paz, na cama de toda a vida.

Fechou-lhe os olhos, azuis claros, tão belos como dantes. Aberta a carta que a tia lhe entregara com as últimas vontades, continha a chave de uma mala, guardada no quarto do fundo, e um A grande em letra trabalhada com uma caneta de tinta permanente. Em baixo, as palavras “Com estas vestes te receberei”.

A misteriosa mala continha um belo e alvo vestido de noiva, a  jura de um amor não traído, avaramente negada em vida, de branco e de noiva, e com um bouquet de camélias nas mãos, partiria ao encontro de Alfredo, belo e forte, esperando-a há anos na sua bicicleta, o vestido guardado para essa boda que ninguém contrariaria.

publicado por Fernando Morais Gomes às 21:05

08
Nov 11

Terra de contrastes, pensava Clémentine, num regresso ao país que a viu nascer, agora que definitivamente trocara o sol de Lisboa pelas margens geladas do Lago Leman. Captar Sintra e suas sombras, era o objectivo que maître Calame lhe incutira, Manuel Luíz em Lisboa trabalharia em litográfica harmonia os sombreados e grisés de Sintra. Sentada no muro musgoso no fim das tardes perfumadas, olhava o Jerónimo, que aguardava com o Silvestre, o burro velho que a levaria de volta à Vila cumprida que fosse mais uma ilustração das paisagens, e sorrindo à rusticidade inocente do velho burriqueiro ia captando casas e gentes, montadas e carruagens, que de quando em quando quebravam o silêncio da estrada nova da rainha a caminho da missa em Santa Maria. Rebelde, Clémentine desenhava poesia com o lápis, outonais sonetos em Colares, verdejantes éclogas no vale rasgado do Rio do Porto, líricas estrofes no velho Convento da Penha. Nada em Sintra lhe escapava, em pormenor e grandeza. Naquele Verão de 1840 sabia-se que o novo consorte da rainha comprara o arruinado convento e para aí planeava um palácio de verão, coisa esquisita, agoirava o Jerónimo, para ela, beleza maior estava naqueles penedos escalavrados que conduziam ao céu de onde mar e rio eram capturados em esplendor e com particular comoção. Lá se instalou, três dias, o Jerónimo esperando paciente com o Silvestre, da casa do antigo capitão-mor, nos Pisões, faria também o desenho, malograda mansão antecedendo o negrume da serra.

-Está bonito, sim senhor!- comentou o boçal burriqueiro, lançando um olho sobre o desenho em construção. A madame tem jeito para a coisa, não haja dúvidas!

Clémentine sorriu, plantada em frente ao solar, captando uma colareja a caminho da fonte lançando cristalina e fresca água jorrada da encosta:

-A beleza é um presente do Céu, senhor Jerónimo, cabe-nos aceitá-la e estimá-la!- dizendo isto, novo pormenor a atraiu, uma velha cozinheira tagarelava ao portão com um homem que aparelhava um burro. A Jerónimo impressionava o pormenor do denso arvoredo, captado com o detalhe de galhos e ramos, choupos e plátanos, até um néscio reconheceria as plantas, feteiras, casario, e um ar nostálgico apelando ao silêncio em todos os desenhos dela que já vira. Alguns a madame rasgara, um já amachucado logrou mesmo uma vez guardar para mostrar à Eudóxia quando voltasse para a janta.

-O belo é o esplendor da ordem das coisas. Foi Deus quem aqui colocou estas matas, para assim distinguir o óptimo do bom. Nada é por acaso, senhor Jerónimo!- perorou a ilustradora, interrompendo o frenesim dos dedos sobre aquele papel sendo inventado.

-Eu para mim, madame, já me contento com a apanha das uvas e a sementeira. Há lá coisa mais bela que uma cepa podada ou uma alface a desabrochar?- divagando com as mãos, Jerónimo matutava antes na faina da horta, verde sim, mas com proveito, a ele muito daquele matagal desbastaria, dos plátanos ouvira dizer ao doutor Simplício que só traziam moléstia. Cleméntine não contrariou, mundos diferentes se colocavam afinal, como lhe confidenciara maître Calame, só é realmente belo o que não serve para nada, tudo quanto é útil é feio, arengara-lhe em Geneve o velho pintor. Os dias em Sintra passavam em serena perfeição. Ao conde da Póvoa pediu para a partir do jardim da casa fazer os traços da serra, recortada pelas chaminés do paço e com o castelo mouro baluarte. O Conde, ainda jovem, anuiu, postando-se o tempo que a função levou ao lado da jovem e prendada artista, para discreta mangação de Jerónimo, olhando cúmplice para o Silvestre, já depois de executados os esboços, passou a aparecer-lhe, supostamente por acaso, nos recantos onde nesses dias se deteve a captar as vistas magistrais, nos Castanhais chegando a inventar um passeio para colher míscaros para uma experiência. Jerónimo, que desde que começaram as “aparições “do conde passou a adoptar postura de escudeiro, guardando a jovem como se sua fosse, acompanhava a obra, com algum à vontade comentou certos desenhos já terminados:

-A madame perdoe-me a ousadia, mas porque é que as pessoas têm todas as caras sumidas? Coitadas de Deus, tanto trabalho e nem se sabe quem são. Ali o Matias no cruzeiro já me veio perguntar desconfiado para que eram estes desenhos todos! Fala-se em mau olhado, sabe, o povo é desconfiado…

Clémentine pousou o lápis, e, condescendendo, comentou com o velho burriqueiro, com um ar misterioso:

-Quando se pinta, não se deve pintar tudo. Convém deixar alguma coisa para a imaginação completar…

A última gravura foi na Fontaine des Amours, idílica ponte onde entendeu captar duas jovens, suspirando por certo, o cheiro dos medronheiros inebriando os sentidos e acelerando o dedilhar nervoso e belo. Três semanas haviam passado, o verão de Sintra despedia-se, denunciando algum afecto, o Jerónimo sentia já saudades da sua madame e dos seus gatafunhos. Montada no Silvestre, a levou à carruagem que a levaria a Lisboa, outro asno levaria os baús e os desenhos, enrolados com uma fita vermelha. Para sua surpresa- ou talvez não- na penumbra da carruagem e devidamente agasalhado, também o conde da Póvoa seguia nessa viagem, atrás de outros esboços em outras fontes dos amores.

publicado por Fernando Morais Gomes às 06:16

01
Nov 11


Amanhecia o dia 1 de Novembro e a Igreja celebrava a festa de Todos os Santos. Sábado sereno, sol claro e céu nimbado, findava o ano de 1755 e reinava tranquilo D. José. Cadenciados, os fiéis afluíam à missa das nove em S. Martinho, celebraria D. Raimundo Miranda Henriques. O juiz dos órfãos, o vigário da vara, o capitão-mor e todas as famílias de Sintra, enchiam a nave em dia grande no calendário litúrgico. Chamativo, na Torre da Vila, o sino repicava. Francisca Aires, a filha, Tomásia, e Maria Lemos, viúva de Teodósio Santos, mesário da Santa Casa, foram as primeiras a chegar, vestidas a condizer com a solenidade, recordando os que já estavam no descanso do Senhor.

-Que dia bonito! Nem parece Novembro! -comentou Tomásia para a mãe, dezassete anos incompletos e cabelo cor de azeitona.

-É o Verão de S. Martinho, minha filha! –lembrou a mãe, mantilha preta cobrindo os cabelos, também o marido se finara já.

Raimundo, há vinte anos pároco de Sintra, nomeado pelo cardeal D. José, uma vez mais cumpria o ritual dos sagrados mortos, o negro, farda da dor, por longos meses lembraria os que haviam partido para junto de Deus, só a esperança na redenção ajudava a aliviar a perda. Em todas as casas havia um falecido a lembrar, uma novena para rezar, sepulturas para cuidar, vivos e mortos no temor a Deus.

-O Senhor esteja convosco! –ia cumprimentando, à porta da igreja, fazendo o sinal da cruz, a muitos casara e baptizara os filhos.

Todos acomodados, deu-se início à missa, num latim imperceptível. Penitentes ajoelhados prometiam arrependimento, mea culpa, o esconjuro dos pecados. Pouco depois das nove e meia, num trepidar contínuo e incontrolável, a terra começou a tremer. Perorava D. Raimundo a homilia, quando se deu um abalo forte e tombou o tecto, logo sucumbindo vinte e sete fiéis debaixo da nave central. Atingido por uma viga do altar-mor, D. Raimundo tombou com o peito trespassado, sendo o altar consumido pelas velas. Os que puderam, fugiram, gritando, só parte da abside se aguentou. Ao segundo minuto, os edifícios começaram a cair, arruinados, e um cenário apocalíptico e de fumo denso cobriu toda a vila. A igreja da Misericórdia ficou em escombros, a ermida de S. Sebastião em ruínas, na Alpendrada, colarejas em pânico rezavam, lancinante, um cão uivava no pelourinho. Caída na igreja, Francisca Aires sangrava, um lenho pontiagudo quase lhe decepara a cabeça, a seu lado Tomásia jazia morta, com o missal na mão e um santo em cacos junto ao peito.

Duraram os abalos seis para sete minutos, interrompidos por breves intervalos. Em todo este tempo um estrondo subterrâneo, qual trovão, soou ao longe. Escureceu-se o sol e exalações sulfúreas empestaram o ar. Por todo o lado se abriram fendas na terra, qual Inferno abocanhando a Terra, para que Belzebu a todos levasse para o mundo das trevas. Na igreja, dois criados de Maria Aires lograram encontrá-la viva, descomposta a levaram para a casa no Arraçário, ou o que dela sobrara: animais mortos, pipas de vinho vertendo, viva entre mortos e morta para a vida. Ao longe, o mar encapelado galgava as arribas, desmoronando-as como grãos de areia.

Muitos outros, em casa e nas ruas foram vítimas da gadanha mortal num inesperado armagedeão, gritos e clamores sucederam-se, num carpir lancinante e impotente. Ninguém cuidava senão de se salvar e pedir a salvação da alma. Trinta e seis mortos se contaram na Vila, emboscados nas missas de finados, o fogo propagou-se à R. da Pendôa, cinzas e fumo toldaram o Paço, de onde a guarnição desertou, deixando os cavalos mortos no estábulo. Em menos de uma hora, terra e mar uniam-se contra os indefesos mortais, sem o adivinhar, as missas de finados viravam de corpo presente, no imenso cemitério em que a Vila se tornou. Era o verão de S. Martinho.

 

publicado por Fernando Morais Gomes às 08:57

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