por F. Morais Gomes

08
Nov 11

Terra de contrastes, pensava Clémentine, num regresso ao país que a viu nascer, agora que definitivamente trocara o sol de Lisboa pelas margens geladas do Lago Leman. Captar Sintra e suas sombras, era o objectivo que maître Calame lhe incutira, Manuel Luíz em Lisboa trabalharia em litográfica harmonia os sombreados e grisés de Sintra. Sentada no muro musgoso no fim das tardes perfumadas, olhava o Jerónimo, que aguardava com o Silvestre, o burro velho que a levaria de volta à Vila cumprida que fosse mais uma ilustração das paisagens, e sorrindo à rusticidade inocente do velho burriqueiro ia captando casas e gentes, montadas e carruagens, que de quando em quando quebravam o silêncio da estrada nova da rainha a caminho da missa em Santa Maria. Rebelde, Clémentine desenhava poesia com o lápis, outonais sonetos em Colares, verdejantes éclogas no vale rasgado do Rio do Porto, líricas estrofes no velho Convento da Penha. Nada em Sintra lhe escapava, em pormenor e grandeza. Naquele Verão de 1840 sabia-se que o novo consorte da rainha comprara o arruinado convento e para aí planeava um palácio de verão, coisa esquisita, agoirava o Jerónimo, para ela, beleza maior estava naqueles penedos escalavrados que conduziam ao céu de onde mar e rio eram capturados em esplendor e com particular comoção. Lá se instalou, três dias, o Jerónimo esperando paciente com o Silvestre, da casa do antigo capitão-mor, nos Pisões, faria também o desenho, malograda mansão antecedendo o negrume da serra.

-Está bonito, sim senhor!- comentou o boçal burriqueiro, lançando um olho sobre o desenho em construção. A madame tem jeito para a coisa, não haja dúvidas!

Clémentine sorriu, plantada em frente ao solar, captando uma colareja a caminho da fonte lançando cristalina e fresca água jorrada da encosta:

-A beleza é um presente do Céu, senhor Jerónimo, cabe-nos aceitá-la e estimá-la!- dizendo isto, novo pormenor a atraiu, uma velha cozinheira tagarelava ao portão com um homem que aparelhava um burro. A Jerónimo impressionava o pormenor do denso arvoredo, captado com o detalhe de galhos e ramos, choupos e plátanos, até um néscio reconheceria as plantas, feteiras, casario, e um ar nostálgico apelando ao silêncio em todos os desenhos dela que já vira. Alguns a madame rasgara, um já amachucado logrou mesmo uma vez guardar para mostrar à Eudóxia quando voltasse para a janta.

-O belo é o esplendor da ordem das coisas. Foi Deus quem aqui colocou estas matas, para assim distinguir o óptimo do bom. Nada é por acaso, senhor Jerónimo!- perorou a ilustradora, interrompendo o frenesim dos dedos sobre aquele papel sendo inventado.

-Eu para mim, madame, já me contento com a apanha das uvas e a sementeira. Há lá coisa mais bela que uma cepa podada ou uma alface a desabrochar?- divagando com as mãos, Jerónimo matutava antes na faina da horta, verde sim, mas com proveito, a ele muito daquele matagal desbastaria, dos plátanos ouvira dizer ao doutor Simplício que só traziam moléstia. Cleméntine não contrariou, mundos diferentes se colocavam afinal, como lhe confidenciara maître Calame, só é realmente belo o que não serve para nada, tudo quanto é útil é feio, arengara-lhe em Geneve o velho pintor. Os dias em Sintra passavam em serena perfeição. Ao conde da Póvoa pediu para a partir do jardim da casa fazer os traços da serra, recortada pelas chaminés do paço e com o castelo mouro baluarte. O Conde, ainda jovem, anuiu, postando-se o tempo que a função levou ao lado da jovem e prendada artista, para discreta mangação de Jerónimo, olhando cúmplice para o Silvestre, já depois de executados os esboços, passou a aparecer-lhe, supostamente por acaso, nos recantos onde nesses dias se deteve a captar as vistas magistrais, nos Castanhais chegando a inventar um passeio para colher míscaros para uma experiência. Jerónimo, que desde que começaram as “aparições “do conde passou a adoptar postura de escudeiro, guardando a jovem como se sua fosse, acompanhava a obra, com algum à vontade comentou certos desenhos já terminados:

-A madame perdoe-me a ousadia, mas porque é que as pessoas têm todas as caras sumidas? Coitadas de Deus, tanto trabalho e nem se sabe quem são. Ali o Matias no cruzeiro já me veio perguntar desconfiado para que eram estes desenhos todos! Fala-se em mau olhado, sabe, o povo é desconfiado…

Clémentine pousou o lápis, e, condescendendo, comentou com o velho burriqueiro, com um ar misterioso:

-Quando se pinta, não se deve pintar tudo. Convém deixar alguma coisa para a imaginação completar…

A última gravura foi na Fontaine des Amours, idílica ponte onde entendeu captar duas jovens, suspirando por certo, o cheiro dos medronheiros inebriando os sentidos e acelerando o dedilhar nervoso e belo. Três semanas haviam passado, o verão de Sintra despedia-se, denunciando algum afecto, o Jerónimo sentia já saudades da sua madame e dos seus gatafunhos. Montada no Silvestre, a levou à carruagem que a levaria a Lisboa, outro asno levaria os baús e os desenhos, enrolados com uma fita vermelha. Para sua surpresa- ou talvez não- na penumbra da carruagem e devidamente agasalhado, também o conde da Póvoa seguia nessa viagem, atrás de outros esboços em outras fontes dos amores.

publicado por Fernando Morais Gomes às 06:16

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