por F. Morais Gomes

27
Dez 11

O seráfico ministro Gaspar terminava mais uma sonolenta mas aviltante fatwa contra o bolso dos contribuintes, Francisco, acabando o jantar já indisposto, apressou-se a mudar o canal para algo menos aterrador, passava um filme sobre tubarões brancos no Discovery. De má em má notícia, o professor de Literatura na Leal da Câmara, apressou-se a abafar mais uma com um brandy caseiro que trouxera de Cantanhede, da casa do pai. O toque da campainha anunciou a chegada do Edgar, colega do liceu, docente de História, para um serão já combinado antes do Natal. Oferecido um brandy velho, não negou, sentando-se na poltrona frente à televisão onde tubarões grandes perseguiam peixinhos no Pacífico, os cortes dos subsídios ainda tema de conversa:

-Pois é Chico, ouviste o Passos Coelho? “Democratizar a economia“, “devolver a confiança”...Já não há pachorra para estes tipos!. Ainda por cima com aquele ar de aluno da catequese, saiu pior que o Sócrates!

-Os dias que Portugal vive, a mim, fazem lembrar-me o Sermão do Bom Ladrão do Padre António Vieira. Acho mesmo que vou falar disso aos meus alunos agora no regresso das férias do Natal.

-Padre António Vieira não é a minha praia, Chico, qual é esse sermão?-Edgar, interessado, ia saboreando o brandy como quem nele colhe sabedoria e calor para animar a conversa:

-Hoje está muito esquecido, os brasileiros chamaram-lhe Paiaçu, o Grande Padre, mas se releres muito do que escreveu, encontrarás muita actualidade nos seus escritos. Premonitórios, até!- levantando-se, Francisco sacou um livro da estante enquanto na televisão um tubarão branco fazia mossa numa praia da Florida- Foi o homem que disse: “não me temo de Castela, temo-me desta canalha”. Erguendo o livro como uma preciosidade, apontou-o na direcção de Edgar: Este homem não foi um génio, foi oxigénio!- rematou, como quem revela uma profecia, voltando para a cadeira e um segundo brandy:

-A história é mais ou menos esta: pediu um ladrão a Cristo que se lembrasse dele no seu reino, e a lembrança que este teve foi que ambos se vissem juntos no Paraíso. Nem os reis podem ir para o paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir para o inferno sem levar consigo os reis. A restituição do alheio não só deve obrigar os súbditos como aos seus senhores. E leu um pouco: "Cuidam ou devem cuidar alguns príncipes que, assim como são superiores a todos, assim são senhores de tudo, e é engano. A lei da restituição é lei natural e lei divina. Enquanto lei natural obriga aos reis, porque a natureza fez iguais a todos; e enquanto lei divina também os obriga, porque Deus, que os fez maiores que os outros, é maior que eles. Esta verdade só tem contra si a prática e o uso". Percebeste?Encriptada, aqui está uma grande verdade, e foi um português que viu mais à frente que o seu tempo que a disse, Edgar!

O amigo, saboreando a bebida, meneava a cabeça em tom de assentimento, dando continuidade à conversa:

-Quer dizer: roubar é tomar o alheio violentamente contra a vontade do dono; os que mandam tomam muitas coisas aos que governam, violentamente, e contra a sua vontade: logo, o roubo é lícito nalguns casos, porque, se se dissesse que quem manda, assim fazendo, age errado, todos eles, ou quase todos se condenariam a si próprios. Aliás, já S.Tomás de Aquino dizia que se os príncipes tiram aos súbditos o que por justiça lhes é devido para conservação do bem comum, ainda que o executem com violência, não é rapina ou roubo. Porém, se tomarem por violência o que se lhes não deve, é rapina e latrocínio. Donde que os que mandam, estão obrigados à restituição, como os ladrões, e  pecam mais gravemente que os ladrões, quanto mais perigoso e mais comum é o dano com que ofendem a justiça de que são supostos defensores.

-Nem mais, meu caro. Vês a actualidade desse texto? O mundo não mudou assim tanto, nestes anos….. Olha, gosto particularmente deste trecho: “os reinos são latrocínios, ou ladroeiras grandes, e os latrocínios, ou ladroeiras, são reinos pequenos. Neste Sermão do Bom Ladrão, o Vieira conta um diálogo ocorrido entre um pirata e Alexandre Magno, rei da Macedónia que foi educado por Aristóteles. Navegava Alexandre pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e, como trouxessem à sua presença um pirata que andava roubando os pescadores, repreendeu-o Alexandre por andar em tão má vida; porém, ele, respondeu assim:" Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? - Assim é. "O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres”-empolgado, Francisco lia em voz alta o livro com frases sublinhadas, seria uma matéria interessante para dar aos alunos no segundo período.E continuou:

-Moral da historia, Edgar? O ladrão que rouba para comer não vai para o inferno; os que vão, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera. Os ladrões que mais propriamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, o governo ou a administração das cidades, os quais com manha e força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam os homens. Estes roubam cidades e países; os outros furtam com risco: estes sem temer, nem desplante; os outros se furtam, são presos: estes prendem e perseguem.

-No fundo, o mundo é um mundo de ladrões. Adão e Eva não foram os primeiros, ao roubar a maçã? E Cristo ao morrer não o foi ao lado de dois ladrões, a quem disse, “hoje mesmo estareis comigo no Paraíso”?- Edgar surpreendia-se consigo mesmo, da cozinha Mena, a mulher do Chico chegava trazendo café e bolo-rei, sobrara muito da consoada.

-O mal é que hoje os ladrões são mais ainda, e estão bastante dissimulados. A maior parte até diz roubar para nosso bem!- rematou o Francisco. Cansado dos tubarões, mudou o canal com o comando, sem novidade, aparecia agora o ministro Relvas a anunciar novos cortes para cumprir o memorando da troika.

-Estes canais hoje só dão programas com predadores...- atirou com ironia enfadada a Mena, cortando o resto do bolo-rei.

publicado por Fernando Morais Gomes às 11:26

26
Dez 11

Desde criança Roberto se habituara àquelas rotinas domingueiras: a missa das 10 com a avó Sara, em S.Martinho, a catequese com o padre Mateus, nariz em forma de gavião, sempre pronto a ameaçar com o Inferno o venal pecado de rir nas aulas de Religião e Moral, desfilara até vestido de anjinho numa procissão do Senhor dos Passos, enfiado num cetim branco com asas que a Ermelinda levara uma semana a coser. Com os anos, afastara-se das igrejas, apenas revisitadas para casamentos e missas de corpo presente, era como voltar a um sítio estranho, desconhecedor da liturgia moderna, embora fascinado pelos vitrais e talha dourada, nisso se revia, mais pela mão do homem que pelos totens a que os artefactos se dirigiam.

Passados os quarenta e separado de Matilde, voltara a passar o Natal com a mãe em Sintra, devota, D. Idalina não dispensou a missa matinal em S.Martinho no dia seguinte ao Natal, a custo arrastou Roberto e o pequeno Fábio. Rendido ao espírito da data, Roberto lá se deixou levar, mal não faria, o prazer dum momento raro com as três gerações, normalmente separadas, levou-o a ceder, se bem que  aguardasse sentado numa cadeira do fundo, contemplando os santos e aquele cheiro a flores frescas, geralmente cheiro a mortos, das coroas que rodeiam os caixões nos rotineiros velórios que de vez em quando tinha de acompanhar.

Na sacristia, a velha Almerinda trocava as jarras e ia acendendo as velas, num ritual de anos desde que enviuvara do Américo do talho, Roberto, agora em Lisboa, deixou-se levar pelo silêncio ritual dos preparativos, perto do T1 na Expo onde morava nada disto havia já, o silêncio da igreja tranquilizou-o, logo interrompido pela necessidade de fumar um cigarro. Saiu a ver as vistas,faltavam uns minutos para a missa, a caminho da Periquita viu passar o Gregório, velho colega do liceu, não o via há muito e correu a abraçá-lo, recordando o futebol de salão e os anos nos juniores do Hóckey de Sintra:

-Gregório! Então, pá? Há quantos anos!Estás na mesma,velho amigo! Essa barriguinha é que…- Roberto ficou feliz de o rever, já nos quarenta também, há anos que não se encontravam. Soubera que tinha ido para Filosofia, ele seguira Económicas, mas acabara jornalista em Lisboa, o Natal e o fim de semana com o filho para o Natal, traziam-no a Sintra para o miúdo estar com a avó, o pai falecera há poucos meses, sentia-se na obrigação de passar o Natal com a mãe, na velha casa nos Pisões.

-Venham de lá esses ossos, grande Roberto!- o Gregório, com uma cara abolachada e óculos de massa, abraçou o amigo, uma barba rala e já esbranquiçada era a principal diferença que lhe notava, de resto  encontrava o Roberto da sua infância igual, com aquele ar engatatão que levara à certa as miúdas de meia Sintra nos bons anos oitenta - Vais à missa?- questionou o Gregório, vendo-o perto da entrada de S.Martinho.

-Que remédio, a minha mãe teimou, e sabes, com a idade, é melhor fazer-lhe a vontade. Para mais está com o neto. Eu, igrejas, é como o diabo da cruz. Vim para aqui fumar um cigarro….

Gregório sorriu, insistindo com o amigo:

-Deixaste de acreditar em Deus, Roberto? Tu, que eras o anjinho favorito do padre Mateus?- Gregório provocava o amigo, que dava uma passa no cigarro quase terminado. Roberto teorizou:

-Nunca leste o Christopher Hitchens, que morreu há duas semanas? Escreveu um livro "Deus não é grande – como as religiões envenenam tudo". O gajo descrevia-se como um crente nos valores do iluminismo, e achava que o conceito de Deus ou de um ser supremo é uma crença totalitária que destrói a liberdade individual. Só a livre expressão e a investigação científica deveriam substituir a religião como um meio de ensinar ética e definir a civilização humana. Estou como ele!

Gregório fez uma pausa, e pondo o braço no ombro do amigo retorquiu:

-Sabes, Roberto, é mais fácil meter Deus debaixo do tapete que eliminá-lo para sempre. Porque, agnósticos, ateus ou meramente revoltados, todos somos capturados pela ideia de Deus desde que nascemos, e quando achamos que o podemos tratar por tu, já ele nos moldou o ser e o comportamento, desde quando ainda não tínhamos disso noção. Assim, negar Deus é sempre uma atitude reactiva, nunca pró-activa. Não se discute Deus, nega-se ou venera-se, e esse tipo de atitude é sempre irracional, daí que o ateísmo nunca possa ser científico mas apenas uma corrente de negação, uma moda, se quiseres.

-Pessoalmente, meu velho, a minha postura é: não acredito em Deus!- e o bosão de Higgs acabará por o “matar”, enquanto chave do universo. Contudo, uma coisa te admito: acredito nos que acreditam. O homem é um ser de crenças. É aliás o único animal que distingue a água da água benta, como alguém um dia escreveu. Muitos dos que buscam respostas para as inseguranças, refugiam-se em algo a que chamam fé, e quando os seus desejos por conjugação de factores inesperados ocorrem, chamam a isso milagres. Acontece o mesmo nas ortodoxias comunistas, com outros santos, altares e sacerdotes. Vê lá a Coreia do Norte!O Freud já explicou isso tudo!

Gregório sorriu, indulgente. Com a torre da Vila a dar as dez, olhou o relógio e apressou-se, combinando com Roberto voltarem a ver-se em breve e deixando no ar um comentário final:

-Será negativo acreditar e ter fé? Quando a fé contribuir para acentuar valores como os da liberdade, livre arbítrio e solidariedade, nada a apontar. É certo que em nome de muitas fés se matou e destruiu, em nome de fanatismos a que se chamou fé, e intolerâncias a que se chamou conversão. Há muita floresta para lá de certas árvores, meu velho. Dá um beijo à tua mãe e ao teu filho!. Se calhar ainda os vou ver por aí…

Voltando para a porta da igreja, já composta lá dentro, a missa estava prestes a começar, Fábio, em silêncio, sentava-se numa fila da frente com a avó, terminando o cigarro, Roberto deixou-se estar à entrada, em pé, mirando aquele cenário e cheiro que até aos catorze anos lhe haviam sido familiares. Disparando, a música do órgão anunciava o início da missa, todos em pé saudavam a entrada dos celebrantes. Curioso, Roberto espreitou, a ver se o velho padre Mateus ainda estava na mesma, vindos da sacristia, nenhum dos três vultos se parecia com ele. Aproximou-se um pouco e atrás dumas vestes brancas com sobrepeliz verde e mitra, reconheceu o Gregório. O velho amigo do Hockéy com quem palestrara minutos antes, era afinal o pároco de S.Martinho. Aproximando-se um pouco das filas do meio, sorriu para o antigo companheiro, que, abrindo os braços, dando início da missa, lhe piscou o olho, cúmplice, como quando marcavam golos no velho ringue do Parque da Liberdade.

-O Senhor esteja convosco!- saudou, alegre e bem disposto o padre Gregório.

-Ele está no meio de nós! -respondeu a assembleia em coro, acompanhada por Roberto, sussurrando, uma missa de quando em quando não faria mal por certo.

publicado por Fernando Morais Gomes às 10:49

25
Dez 11

Arnaldo raramente ia à praia, enfiado naquele sótão da Rinchoa onde escrevia poemas que ninguém lia, tesouro da sua gaveta, confessionário dum ser torpedeado de inseguranças e fantasmas. Existia sem viver. Depois da consulta no hospital, na véspera de Natal, e a notícia de um fim próximo, tabaco fazendo das suas, sentiu a necessidade de estar perto da água salgada, sentir o cheiro límpido do iodo. A consoada passou sozinho, no dia de Natal, pela manhã, aterrou na esplanada deserta da Praia Grande sequioso de whiskies duplos. Ninguém nos ensina a morrer, todos os dias da vida, porém, são intervalos que a morte nos concede, sabia-o agora.

Um cancro no pulmão intrometia-se, indesejável. No início, a surpresa, a hipótese do engano, a segunda opinião. Depois, o desespero, presença insuportável, lágrimas, mágoa, as dores como companheiras mais chegadas. Estava só, naquela morte de viver, os livros que nunca editaria, tudo comprometido por um corpo frágil e tangível, qual anjo caído, pecador, mergulhado em culpas secretas a quem iam faltando asas para voar. Exaurido do mundo, exaurido de si, talvez finalmente descansasse. Em volta, uma casa amarela expelia o fumo duma lareira que por certo crepitara toda a noite, crianças alegres dormiriam  agarradas aos brinquedos que apesar da crise os pais não lhes terão com sacrifício negado.

Antevia já a campa inerte onde poucas flores lhe iriam levar, uma lápide burocrática e igual a todas as outras, ninguém para lembrar a obra por editar, só um solitário funcionário do registo civil escrevinhando em guardanapos de papel na mesa da leitaria do bairro, obras-primas da sua gaveta secreta, fumando os três religiosos maços de cigarros diários. Agora acendia mentalmente o cigarro, e fumava em imaginação, comprara até um isqueiro de plástico para se enganar. A quimioterapia fazia das suas, os cabelos caíndo agarrados ao pente, a tosse purulenta, os olhos inchados.

Uma vez mais pegou na caneta e num guardanapo de papel e ensaiou um testamento, requiem dos bens que não tinha, para uma família que há muita perdera. Quando tudo acaba, há a tentação absurda de escrever para imortalidade. Redigiu umas linhas, levantou-se, passeando no areal, deixando um trilho de pegadas na areia molhada. Ignorou o médico, e fumou um dos cigarros assassinos, o mal estava feito, afinal.

À noite, a roupa foi encontrada numa rocha, o corpo nunca apareceu. Um empregado da esplanada, limpando as mesas, deu com um pequeno papel amarrotado dentro de um cinzeiro, curioso, foi ler.”Hoje começa o dia de amanhã”. Refastelada de coscorões e cabrito, uma família passeava pela falésia, respirando o vento frio e purificador do Natal.

 

publicado por Fernando Morais Gomes às 11:20

20
Dez 11

Mais um Natal.Baltasar, Gaspar e Melchior, sócios na ourivesaria e solteirões inveterados, à meia-noite trocaram presentes e comeram bolo-rei, agora sem brinde e sem piada, comentava o Gaspar.

Baltasar, 51, era o mais velho, e gerente da loja, muitas alianças de casamento vendidas, nunca a dele, a olho nu distinguia um fio de ouro de um pechisbeque com banho de ouro.Com Gaspar iniciaram o negócio há oito anos, chegaram a correr o país em feiras e mercados antes de finalmente se estabelecerem numa zona elegante, até hoje sem um assalto, felizmente. Melchior retornara de África com a descolonização, era mestiço, depois de um casamento falhado, conheceu os outros dois numa viagem à Turquia, durante um tour de camelo em Ismir e acabou  partilhando o negócio e a casa no Banzão.

Na véspera de Natal haviam tido algum movimento na loja, apesar da crise, uns brincos, quatro relógios, uma salva em prata, dava para ir mexendo, à noite em paz jantaram e foram à missa do galo em Colares.

Pela manhã de 25 de Dezembro, coube a Melchior despejar o lixo, tarefa rotativa de acordo com as regras  lá  de casa, papeis dos embrulhos, a caixa do bolo rei e uns restos dos camarões tigre da ceia de Natal, que bacalhau lá em casa não era tradição. Tinham uma empregada duas vezes por semana, a Maria, que por ser feriado não fora trabalhar, eles mesmo acomodavam a sala e cozinha e iriam almoçar mais tarde à Ericeira. Apesar do tempo chuvoso, sempre dava para arejar e desentorpecer as pernas.

Já Melchior voltava para casa quando ouviu um restolhar junto ao contentor, algum cão buscando sobras de peru, pensou. Curioso, aproximou-se. Uma alcofa de estopa atada com um fio de nylon estava encostada mesmo ao lado do contentor e parecia conter algo, agitava-se ligeiramente. Espreitando de soslaio, assombrado se lhe deparou um bebé, ainda com sangue no corpo, não teria mais que umas horas de vida, ali abandonado na manhã fria do dia de Natal.

Olhou em redor ainda atónito, tentando descortinar alguém na redondeza, algum carro, quem poderia ter cometido uma barbaridade daquelas, e a medo, de quem nunca pegou num recém-nascido antes, agasalhou-o com o casaco de lã que vestia e levou-o para casa.

Baltasar fazia a barba, enquanto Gaspar dolente fazia zapping com o comando, todos os canais na bênção do Papa, comentou entediado, o passo ofegante de Melchior com um volume nos braços assustou-os.

-Depressa! Vejam só o que estava no lixo! Não há direito! - exibiu Melchior um ensanguentado e roxo nascituro, um rapaz ,segundo vira logo.

Baltasar e Gaspar miraram-no atarantados, Baltasar ainda com creme da barba na cara. O pequeno dormitava, inocente, porém já órfão.

-Tem de se avisar a polícia. Mas esperem, vamos dar-lhe banho primeiro -sugeriu Gaspar, logo correndo a buscar um alguidar com água quente.

-E comida? Há algum biberão?

-Melchior, mete-te no carro e vê qual a farmácia de serviço. Traz fraldas e um biberão. Ah e pergunta o que é que se dá de comer nestas idades! -logo destinou Baltazar, improvável baby-sitter sem experiência  com crianças.

Com o barulho, o bebé acordou, desfazendo-se num pranto. Enquanto Melchior não voltava, vinte minutos que mais pareciam vinte horas, foram deitando leite morno nos lábios da criaturinha que logo sugava instintiva, e dizendo aquelas patetices que se dizem aos bebés como se fossem bonecos.

Regressado Melchior, dividiram as tarefas daquela original manhã do dia de Natal, e uma hora depois já o rebento dormitava na cama de Baltazar, protegido por almofadas dos lados para não cair, com o trio embevecido adorando aquela cena que pensavam só acontecer nos filmes. Sócrates, o gato siamês, assistia a tudo espantado, e miava sem saber o que se estava a passar, comida não era.

Entretanto chegou a Maria, apesar do feriado passara a saber se era preciso alguma coisa. Maria, vinte e dois anos, separada de fresco do Zé Luís, entretanto despedido da carpintaria do Ikea, ficou abismada com a história e, maternal, logo ficou a tomar conta do pequeno anjo, nascido não em manjedoura, mas num caixote da câmara de Sintra. Ela própria  passara recentemente por um traumatizante aborto involuntário, e agora, ali um bebé, poderia ter sido o seu, salvo  numa chuvosa mas radiante manhã de vida no presépio do Banzão.

Chegada a autoridade, deslocaram-se todos para a GNR de Colares, onde dois guardas de serviço, ternurentos, o colocaram em cima de uma secretária junto à árvore de Natal da esquadra, ao fundo num televisor um coro alemão cantava o Adeste Fidelis. Seguiria para uma instituição de acolhimento, por certo, formalidades, mas logo Baltasar e os outros quiseram seguir o caso, se os pais não aparecessem estavam interessados em criá-lo. Gaspar, mais crente, associava o acontecimento a mais que uma coincidência, e logo na data que fora.

Reluzindo às cores com o reflexo das luzes de Natal no rosto minúsculo, o pequeno a quem algum drama pessoal conduzira ao abandono atroz, parecia sorrir na alcofa com todos em volta mirando, silenciosos, mas de coração grande.

No rio de Colares, duas pombas brancas esvoaçavam soltas e livres, chaminés fumegantes anunciavam o lento acordar da manhã de Natal, a vida renovava-se e o que por certo seria mais um drama da vida madrasta de famélicos de 2011, prenunciava agora novos começos numa vida sempre a recomeçar.

-Há-de chamar-se Salvador! -profetizou Maria, uma lágrima no olho adoçando o sorriso de esperança, maternidade reencontrada junto com três  tios  emprestados para o que desse e viesse.

publicado por Fernando Morais Gomes às 09:20

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