por F. Morais Gomes

20
Dez 11

Mais um Natal.Baltasar, Gaspar e Melchior, sócios na ourivesaria e solteirões inveterados, à meia-noite trocaram presentes e comeram bolo-rei, agora sem brinde e sem piada, comentava o Gaspar.

Baltasar, 51, era o mais velho, e gerente da loja, muitas alianças de casamento vendidas, nunca a dele, a olho nu distinguia um fio de ouro de um pechisbeque com banho de ouro.Com Gaspar iniciaram o negócio há oito anos, chegaram a correr o país em feiras e mercados antes de finalmente se estabelecerem numa zona elegante, até hoje sem um assalto, felizmente. Melchior retornara de África com a descolonização, era mestiço, depois de um casamento falhado, conheceu os outros dois numa viagem à Turquia, durante um tour de camelo em Ismir e acabou  partilhando o negócio e a casa no Banzão.

Na véspera de Natal haviam tido algum movimento na loja, apesar da crise, uns brincos, quatro relógios, uma salva em prata, dava para ir mexendo, à noite em paz jantaram e foram à missa do galo em Colares.

Pela manhã de 25 de Dezembro, coube a Melchior despejar o lixo, tarefa rotativa de acordo com as regras  lá  de casa, papeis dos embrulhos, a caixa do bolo rei e uns restos dos camarões tigre da ceia de Natal, que bacalhau lá em casa não era tradição. Tinham uma empregada duas vezes por semana, a Maria, que por ser feriado não fora trabalhar, eles mesmo acomodavam a sala e cozinha e iriam almoçar mais tarde à Ericeira. Apesar do tempo chuvoso, sempre dava para arejar e desentorpecer as pernas.

Já Melchior voltava para casa quando ouviu um restolhar junto ao contentor, algum cão buscando sobras de peru, pensou. Curioso, aproximou-se. Uma alcofa de estopa atada com um fio de nylon estava encostada mesmo ao lado do contentor e parecia conter algo, agitava-se ligeiramente. Espreitando de soslaio, assombrado se lhe deparou um bebé, ainda com sangue no corpo, não teria mais que umas horas de vida, ali abandonado na manhã fria do dia de Natal.

Olhou em redor ainda atónito, tentando descortinar alguém na redondeza, algum carro, quem poderia ter cometido uma barbaridade daquelas, e a medo, de quem nunca pegou num recém-nascido antes, agasalhou-o com o casaco de lã que vestia e levou-o para casa.

Baltasar fazia a barba, enquanto Gaspar dolente fazia zapping com o comando, todos os canais na bênção do Papa, comentou entediado, o passo ofegante de Melchior com um volume nos braços assustou-os.

-Depressa! Vejam só o que estava no lixo! Não há direito! - exibiu Melchior um ensanguentado e roxo nascituro, um rapaz ,segundo vira logo.

Baltasar e Gaspar miraram-no atarantados, Baltasar ainda com creme da barba na cara. O pequeno dormitava, inocente, porém já órfão.

-Tem de se avisar a polícia. Mas esperem, vamos dar-lhe banho primeiro -sugeriu Gaspar, logo correndo a buscar um alguidar com água quente.

-E comida? Há algum biberão?

-Melchior, mete-te no carro e vê qual a farmácia de serviço. Traz fraldas e um biberão. Ah e pergunta o que é que se dá de comer nestas idades! -logo destinou Baltazar, improvável baby-sitter sem experiência  com crianças.

Com o barulho, o bebé acordou, desfazendo-se num pranto. Enquanto Melchior não voltava, vinte minutos que mais pareciam vinte horas, foram deitando leite morno nos lábios da criaturinha que logo sugava instintiva, e dizendo aquelas patetices que se dizem aos bebés como se fossem bonecos.

Regressado Melchior, dividiram as tarefas daquela original manhã do dia de Natal, e uma hora depois já o rebento dormitava na cama de Baltazar, protegido por almofadas dos lados para não cair, com o trio embevecido adorando aquela cena que pensavam só acontecer nos filmes. Sócrates, o gato siamês, assistia a tudo espantado, e miava sem saber o que se estava a passar, comida não era.

Entretanto chegou a Maria, apesar do feriado passara a saber se era preciso alguma coisa. Maria, vinte e dois anos, separada de fresco do Zé Luís, entretanto despedido da carpintaria do Ikea, ficou abismada com a história e, maternal, logo ficou a tomar conta do pequeno anjo, nascido não em manjedoura, mas num caixote da câmara de Sintra. Ela própria  passara recentemente por um traumatizante aborto involuntário, e agora, ali um bebé, poderia ter sido o seu, salvo  numa chuvosa mas radiante manhã de vida no presépio do Banzão.

Chegada a autoridade, deslocaram-se todos para a GNR de Colares, onde dois guardas de serviço, ternurentos, o colocaram em cima de uma secretária junto à árvore de Natal da esquadra, ao fundo num televisor um coro alemão cantava o Adeste Fidelis. Seguiria para uma instituição de acolhimento, por certo, formalidades, mas logo Baltasar e os outros quiseram seguir o caso, se os pais não aparecessem estavam interessados em criá-lo. Gaspar, mais crente, associava o acontecimento a mais que uma coincidência, e logo na data que fora.

Reluzindo às cores com o reflexo das luzes de Natal no rosto minúsculo, o pequeno a quem algum drama pessoal conduzira ao abandono atroz, parecia sorrir na alcofa com todos em volta mirando, silenciosos, mas de coração grande.

No rio de Colares, duas pombas brancas esvoaçavam soltas e livres, chaminés fumegantes anunciavam o lento acordar da manhã de Natal, a vida renovava-se e o que por certo seria mais um drama da vida madrasta de famélicos de 2011, prenunciava agora novos começos numa vida sempre a recomeçar.

-Há-de chamar-se Salvador! -profetizou Maria, uma lágrima no olho adoçando o sorriso de esperança, maternidade reencontrada junto com três  tios  emprestados para o que desse e viesse.

publicado por Fernando Morais Gomes às 09:20

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