por F. Morais Gomes

09
Jul 12

Foi há três anos que André se decidiu a avançar com o projecto, um filme sobre a  Gafaria de S.Pedro, a mal conhecida  leprosaria no Arrabalde de Sintra.Lázaros escorraçados  e errantes ali encontraram refúgio até ao século XVI, sob a protecção do Espitral do Espírito Santo, o argumento seria fascinante. Se não arranjasse produtor, faria uma curta. Atraíam-no os filmes grunge, Murnau e Tod Browning, lendo nas sombras e angustias dessas fitas grandes semelhanças com o mundo actual.

Da pesquisa feita para o filme, chamou-lhe a atenção uma tal Mabília, leprosa que ali morrera em 1567, tida como feiticeira e de quem se dizia ter contraído lepra como castigo pela prática de magia que usava para   seduzir os homens e depois os roubar. Morrera deformada e no maior sofrimento, jurando vingança.

Falando com os mais velhos de S.Pedro, André verificou que apesar do tempo decorrido, a história ainda era lembrada, notando porém silêncios cúmplices a cada tentativa de saber mais, havendo  quem jurasse ter visto missas negras nos Capuchos orquestradas por Mabília, enquanto velas rodeavam animais oferecidos em sacrifício.

Por essa altura alguns casos ocorreram reveladores de anormalidade numa terra geralmente bucólica e pacata, surgindo notícias em tablóides relatando o desaparecimento de diversas pessoas sem deixar pistas ou testemunhas. Um em Ranholas, em Março, outro no Ramalhão, um mês depois, outro ainda a quem haviam visto pela ultima vez na Mourisca, pouco antes da meia-noite. Vozes  delirantes, dos que habitualmente viam filmes de terror, associavam mesmo o facto à tenebrosa Mabília, séculos após ter morrido, se bem que sempre emprestando um ar trocista aos comentários.

Três pessoas estavam desaparecidas, não havia pistas, uma testemunha que fosse. André, absorvido na concepção do seu filme e desafiado pela adrenalina do perigo, decidiu investigar  por conta própria. Passadas algumas semanas, contudo, nada descobrira. Os desaparecidos não voltaram a ser vistos e a GNR pensava em arrumar o assunto, para ela a dispensar grandes cuidados. Até nem eram da terra, comentavam, se calhar até tinham fugido zangados com os  familiares. Importante, eram os gangues da linha de Sintra, e fechar bares por causa do ruído aos sábados à noite.

Uma noite, visivelmente alterado, André irrompeu arfando e agitado no posto da GNR de Sintra. Não dormira na noite anterior, assaltava-o uma intuição que se adensava no seu espírito. Visivelmente fora de si, pediu ao cabo Inácio que o acompanhasse com alguns guardas a S. Pedro, tinha a certeza de ter descoberto algo aterrador, tendo o grupo seguido para o local onde pela sua pesquisa a bruxa Mabília havia dado o último suspiro, uma encosta perto da igreja de S. Lázaro. Movido por uma força estranha, André começou a escavar e arrancar as pedras da calçada, perante o ar surpreso dos agentes, seguros de já lhes terem estragado a noite. Estranhamente, a terra, já no enfiamento com o largo de S. Pedro parecia mole e húmida, como se ali tivessem cavado recentemente. Perturbadores, restos de um braço  putrefacto começaram a ficar visíveis. Nessa altura, o rosto de André transfigurou-se, e começou a gritar palavras incompreensíveis, cabeceando possesso. Percebia agora o que se passara. Era como se um inquilino invisível e usurpador habitasse o seu corpo, manietando-lhe os movimentos, vexando-o como  presa ocasional para lhe parasitar o espírito e assim concretizar uma ânsia de vingança que de tempos havia que saciar.O corpo era de um dos desaparecidos, fora André, possuído por Mabília, quem o havia morto, tal como os outros, embora nada recordasse.

Arrancou a camisa e desatou a gritar, descobrindo-se marioneta sem alma e capturada por um dono invasivo do qual não se conseguia apartar, dos seus olhos chispavam os de Mabília. Sem o saber, ao tanto querer descobrir sobre ela na pesquisa para o filme, o seu corpo fora por si possuído, e assim se vingava séculos depois de ter morrido numa enxerga imunda, usando  André como títere impotente do seu plano predador.

André recupera hoje numa casa de repouso em Mértola, quebrantado, com os olhos sempre fixos num horizonte invisível. Mabília, dizem, ainda hoje pode ser avistada em S.Pedro em noites de lua cheia, sentada no Túmulo dos Dois Irmãos e esperando as infelizes presas nas noites de lua cheia.

 

publicado por Fernando Morais Gomes às 21:42

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