por F. Morais Gomes

08
Dez 10

Ricardo Lacerda recebera a nomeação e apressou-se a marcar uma reunião com o arguido. Jovem advogado, crente na justiça, fora nomeado defensor oficioso num processo de furto, um indivíduo de etnia cigana que furtara uma carteira com 300 euros e alguns cartões de crédito a um farmacêutico à saída do apeadeiro da Portela de Sintra. Um empurrão simulado, umas mãozinhas de veludo e logo voava a carteira. O arguido, de nome Eugénio, negava, mas duas testemunhas que saíam do comboio à mesma hora garantiam que tinha sido ele, o facto de ter começado a correr sem justificação logo que a vítima deu por falta da carteira apontavam para ele, infelizmente ocorria muito na linha de Sintra.

Ricardo chamou Eugénio para combinarem a defesa. Eugénio, pouco mais de vinte anos, fio de ouro ao peito, cabelos negros desalinhados possuía já antecedentes criminais, uma rixa na feira de S. Pedro com um cliente na banca de roupas que lá explorava, com a irmã, por causa dum casaco de cabedal levaram a seis meses de pena suspensa, era primário e ficou em dúvida quem provocara quem.

Eugénio argumentou que era inocente, a carteira não fora descoberta, as provas eram circunstanciais e as ditas testemunhas não viram nada, só começou a correr porque ia apanhar um autocarro e estava atrasado, já estava a sair da paragem e não o podia perder.

Ricardo tomou as suas notas, recomendou a Eugénio que no dia do julgamento levasse uma camisa usada e tirasse o fio de ouro, e falasse sempre olhando o juiz de frente, tom humilde, que os juízes gostam, a verdade haveria de vir ao de cima.

No dia do julgamento, toda a família e amigos de Eugénio enchiam a sala de audiências, os mais velhos de preto e chapéu de feltro, as mulheres mais novas barulhentas e com crianças ao colo. Ricardo olhou a plateia e viu que dele se esperava que livrassem o Eugénio, a ver bem podia ser uma boa aposta, os ciganos estão sempre metidos em sarilhos e se ganhasse o processo outros viriam ter com ele, pagavam sempre em dinheiro vivo e a horas, nisso não tinha razão de queixa.

Eugénio em silêncio aguardava. Iniciada a sessão, cumprimentos ao tribunal e ao procurador, todos sentados, o juiz leu a pronúncia e perguntou pelos costumes, a tudo respondeu com verdade. Sobre os factos de que vinha acusado negava, era inocente e tinha um filho para criar.

-Muito bem! -referiu o juiz. Mandem entrar a primeira testemunha!

Entrou uma senhora já na casa dos sessenta, óculos de massa, coxeava um pouco. No dia dos factos, vinha no comboio desde o Rossio e o réu vinha na sua carruagem, calado. Ricardo contra-interrogou:

-A senhora pode dizer como ia o réu aqui presente vestido na altura dos factos?

-Se bem me lembro, sôtor, ia com um casaco amarelo esverdeado, era já fim da tarde e havia muita gente. Só sei que de repente começou a correr e aquele senhor ali presente disse que lhe faltava a carteira.

-Mas concretize lá, o casaco era amarelo ou era verde? -insistiu.

-Não me lembro bem, acho que era amarelo…-hesitou.

-Ah, acha! Então não tem a certeza?

-Certeza não, mas era amarelo esverdeado.

-Muito bem. Senhor juiz não desejo mais nada! -concluiu, o testemunho era vago e inconclusivo, estava a correr bem.

A testemunha seguinte, outra senhora, trinta anos, foi mais afirmativa:

-Aquele senhor roubou a carteira que eu vi. Aliás é mesmo do tipo que não engana ninguém, infelizmente a linha de Sintra está cheia disto! -rematou, para ela não havia dúvidas.

Postas as alegações do Ministério Público, Ricardo achou que tinha achado o mote para a defesa:

-Senhor doutor juiz, senhor procurador. Este tribunal tem hoje que decidir um caso em que nenhuma prova ou testemunho é assertivo no sentido de considerar o réu culpado do crime de que vem acusado. Eu diria mesmo que estamos perante um caso nítido de preconceito. Preconceito pelo meu cliente que pertence a uma minoria étnica já de si socialmente desvalorizada. Ora este tribunal tem de apreciar factos e de tratar os cidadãos por igual, em função da sua culpa concreta e provada! Não caia o anátema da suspeição permanente sobre a cabeça dos inocentes. Este tribunal só se honrará absolvendo o réu aqui presente! -rematou contente consigo próprio, o juiz coçava o queixo.

Passada uma semana, a sentença absolvia o Eugénio, “in dúbio pro reo”e mandava-o em paz. Abraços barulhentos, vários ciganos pedindo já cartões ao jovem advogado, afinal ainda há justiça, clamavam uns de sangue mais quente.

Já a sala se esvaziava, Eugénio foi cumprimentar o advogado:

-Obrigado, doutor, ao menos você não teve problema em defender-me….

-É para isso que cá estou, senhor Eugénio! -E aproveitando aquele talvez último momento em que estaria com o cliente, perguntou-lhe em tom discreto:

-Diga-me uma coisa, agora que isto acabou, eu tenho de guardar sigilo profissional, como sabe, e portanto o que você disser para mim é como se fosse para um túmulo. Você roubou ou não roubou a carteira?

Eugénio baixou os olhos, pôs um ar pungente e confessou:

-Roubei sim…

-Eu suspeitava…-rematou o jovem advogado, sorrindo irónico. Licenciara-se jurando lutar pela justiça, mas a verdade é sempre a verdade que se quer que seja, ensinara-lhe o patrono, velho advogado batido na barra.

E saíram a juntar-se à autêntica excursão de familiares continuando a distribuir cartões do escritório, talvez úteis para o futuro…


publicado por Fernando Morais Gomes às 19:58

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