por F. Morais Gomes

13
Fev 11

Uma reunião no escritório de Augusto Frazão, colega advogado estabelecido nas Avenidas Novas trazia António Rebordão a Lisboa a um prédio curiosamente contíguo àquele onde vivera muitos anos e praticamente nascera. O velho edifício dos anos vinte ainda lá estava, quase totalmente ocupado com escritórios e a placa central com carros, descaracterizada, amorfa, por momentos, enquanto o colega não chegava viu-se devolvido a um passado de mais de quarenta anos antes.

Morava há muito na zona de Sintra, uma casa de Verão da família com o tempo passara a ser de todo o ano, a cidade onde nascera e crescera cada vez mais só para ir ao teatro ou a reuniões de trabalho, e francamente, não desejava voltar. Não se deve voltar ao lugar onde se foi feliz, dizem, e o seu caso confirmava o ditado.

O velho prédio lá estava, recheado de memórias e sons difusos dum passado adormecido. Lembrava o enorme corredor da casa com oito assoalhadas e duas criadas que o avô autoritário mantinha em sentido, disciplinadas, velho capitalista adepto da poupança. Com ternura revia em pensamento as brincadeiras no saguão das traseiras, única entrada autorizada aos empregados, o leiteiro com vasilhas de metal, patos e galinhas em capoeiras numa cidade rural ainda, no Natal povoada com perus e patos vendidos na rua e que assustados seguiriam para a mesa da consoada previamente embriagados de véspera. Recordava ainda a escola primária, na rua contígua, a velha professora, a D. Hermínia, o bibe branco, o bivaque da Mocidade, o carocha preto do pai, as cadernetas de cromos e os fascículos do Cavaleiro Andante. Tudo desaparecido, arquivado em velhas fotos ou lápides de cemitérios, anónimas e definitivas.

A igreja de Fátima, próxima, lembrou-lhe as missas de domingo com a avó, a primeira comunhão, o crisma, os veludos roxos de luto que durante a Semana Santa cobriam os santos, convidando ao jejum da carne para tudo acabar num apetitoso borrego no domingo de Páscoa e o fato com calções aprumado para o  habitual passeio de cacilheiro ou na mata de Monsanto.

A reunião tardava e António deu consigo a deambular sentado, fantasmas vários passavam mas só eles os via: o Chico polidor, enfrascando-se no lugar de hortaliça do Narciso, o Almeida, da mercearia, do açúcar mascavado a peso e do azeite à vasilha, a casa do médico judeu, refugiado da guerra e hoje com netos reputados cirurgiões, e os amigos de infância, sempre miúdos e de calções, a quem perdera o rasto, um ou outro pensou já ter descoberto no Facebook, mas não ousava averiguar, depositados no passado, na secção de boas memórias , prateleira da saudade.

Puxando de um cigarro ,na sala de espera, ao toque dum sino vizinho, deu consigo  a recordar a primeira comunhão, quando perante o padre Teodoro e apenas sete anos, no confessionário da igreja de Fátima tivera de revelar terríveis pecados mortais, a morte por afogamento de uns coelhos recém-nascidos na capoeira da  Gracinda, que ufanamente, com a Lígia e a Aida, amigas de infância, atiraram a um poço julgando serem ratos e assim fazendo um favor que por certo seria agradecido, e afinal sem saber porquê, postos a um canto de castigo depois duma tareia desconcertante, cruel ingratidão para com quem libertara o quintal de roedores.

Ali fora feliz. Os jantares de Natal com a família reunida, mais de trinta, avós e netos, criados, primos do Alentejo, o dia em que concluída a quarta classe o avô lhe oferecera o primeiro relógio e cem vultosos escudos depositados no Montepio para quando fizesse vinte e um. E também a vaga sensação de que apesar de feliz, nem tudo corria bem. Uma guerra em África de que pouco sabia, até o tio João ter sido mobilizado para Angola, o Zeferino, seu explicador de matemática, que à boca pequena se dizia ter estado preso num tal Tarrafal, e aquele dia em que, com a televisão e a rádio silenciadas e passando música clássica foram todos à estação do Rego acenar com lenços brancos ao comboio que levava o caixão de um senhor morto depois de ter caído duma cadeira, pessoa importante, disseram, até nem houve escola.

Veio Abril e a adolescência esperançosa - a visão ingénua do Egipto de hoje varias vezes o havia reportado para esses dias gloriosos – sonhos e lutas, a licenciatura, projectos cumpridos e por cumprir, e o mundo cresceu para fora das Avenidas Novas e foi até onde os aviões e a vontade o levaram, sempre retornando e sempre partindo,

Os fantasmas à solta nas Avenidas Novas recolhiam agora, a secretária chamava para a reunião, telemóvel desligado e o PC à mão para as notas e os mails que se impusessem. O Augusto Frazão chegou atrasado, amável e sorridente recebeu-o á entrada do gabinete:

-Meu caro Rebordão, desculpe o atraso, o trânsito, sabe…. Eu sei que você é um homem lá da linha, outra calma, é um sortudo, você sabe lá o que é o inferno de trabalhar em Lisboa. Deu com a morada facilmente?

António sorriu e foi entrando, sem pressas:

-Não foi fácil, é raro vir para estes lados, o trânsito está sempre a mudar. Come-se bem por aqui?....


publicado por Fernando Morais Gomes às 23:59

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