por F. Morais Gomes

21
Fev 11

No café do Esteves, entre duas minis e uma chamuça, congeminava-se sobre a associação que se pretendia constituir, Carla e Diniz, finalistas de Comunicação Social tinham um projecto multimédia, havia que organizar, procurar fundos e parcerias, o Diogo faria um site, o Facebook facilitaria contactos. Filomeno, antigo revisor do Diário Popular aconselhava, experiência de outros tempos. O nome estava ainda em génese, mas seria sem fins lucrativos e produtora de eventos, sede provisória na garagem do Rodrigo, em Massamá. Entre os fundadores, a Mena, cantora de jazz, curso de teatro na ESTC; o Peres, adepto da permacultura; o Nicolau, poeta e letrista rapper e a Vanessa, webdesigner, filha do Esteves do café. Naquele dia discutiam-se os objectivos:

-Pessoal, isto tem de ser uma coisa diferente, é preciso estimular o livre pensamento, a ruptura,fugir das programações das câmaras, viradas para o show-off e a reprodução de modelos estafados, só para os ecrãs. Já viram que  vai a eventos se limita a absorver sem espírito crítico? Onde é que está a mudança mental? É como o cão do Pavlov, acena-se com o osso e o cão saliva- comentou o Peres, enrolando um cigarro e pedindo mais uma mini.-O problema está em mudar de osso!

-As pessoas estão adormecidas, amigo,isto com a crise as prioridades são outras...- atalhou o Filomeno, veterano, passara pelo GAC nos anos setenta, guru venerado entre a malta nova. – para fazer qualquer coisa diferente é preciso apostar nas vantagens criativas, e sobretudo, convencer quem tem o poder de decisão a criar nichos, apoiar com espaços criativos. Já viram o dinheiro que vai para as obras em telhados de sítios que só metem  pessoas de vez em quando para uns almoços?E os sítios abandonados que há por aí, bem podiam ser usados por grupos de pessoal, tipo "associações residentes, fizeram isso em Inglaterra...E potenciar a ligação entre os criadores e os agentes económicos.

O Nicolau, mais descontraído, ensaiava um rap, contorcendo o corpo junto ao balcão:

“-A malta -não -tem espaço- o espaço- não- tem-malta –o-que-poderei-eu- fazer-para os gajos convencer- o dinheiro- já não é- há é-que –berrar- bué!-é-preciso dar a volta!- revolta!-revolta!”- ia improvisando, mais tarde ensaiaria com o Mingas

Ao balcão, o Adriano do talho, com um olho no Esteves e outro na conversa, fazia um aparte irónico:

-Se fossem mas era tomar banho…. Isto è malta que quer é viver à sombra da bananeira, amigo Esteves, cantem mas é um fadinho, ou coisas que o povo goste!- comentava em aparte, mais um rissol para o caminho.

-E depois é sempre a mesma coisa, só dificuldades! Se se organiza uma festa para angariação de fundos, vem a GNR e fecha, multas para cima do pessoal, há sempre uns anónimos a chamar por causa do ruído ou da licença. Na rua, nem pensar, os bancos não apoiam  a cultura, é mais fácil dar um milhão ao Mourinho…-rematava o Diniz. – Portugal está muito mal frequentado...

Geração recibo verde, outros nem verde, tentavam dar a volta, a princípio parecera fácil, mas eram só dificuldades, apesar da  associação na hora, até para o telemóvel era preciso fundo de maneio, a Câmara alegava cortes orçamentais, o centro de emprego, que antes apoiara estágios remunerados cortava-se agora.

-Então e a hipótese dum espaço no Museu Berardo? Aquilo agora está meio parado…- ainda sugeriu o Diniz-Aqui há tempos li que em Helsínquia  apoiavam uma espécie de laboratórios de eventos, tipo cluster, porque não uma coisa parecida, com tanto edifício industrial em ruínas, uma pintura e electricidade e já era um ponto de partida...

-Já tentámos, mas é tudo para alugar- atalhou o Filomeno, já lá estivera- sabem como é, no money, no funny.

A noite ia chegando, as minis acumulando, só a página do Facebook avançava. Amigos prometiam um concerto de recolha de fundos,colunas emprestadas, umas grades à consignação, havia que tentar, o Filomeno tinha um amigo no LXFactory que emprestaria os audiovisuais, a Mena e a Vanessa poriam à venda artesanato e uma sangria de frutos silvestres, fizera sucesso em Óbidos uma vez.

-Sintra está morto, rapazes- lá interviu o Esteves, a filha no grupo criava-lhe a obrigação de opinar- Quem tem dinheiro, quer é ir a sítios para ver e ser visto,coisas que desviem a cabeça dos problemas, um leitão em Negrais, futebol- elencava, conformado- o que vocês fazem, vão ver  vai ser sempre para os mesmos dez, e é se não se chatearem uns com os outros até lá!- aconselhou, repondo o balcão com guardanapos, o grupo na mesa do canto googlando no portátil.Na televisão em frente anunciava-se  um casting para um programa de novos talentos.

-Olhem, estão a ver?- rematou o Diniz- o único caminho que se oferece  é este, o do sucesso sem trabalho para  cinco minutos de fama. O resto está minado. O pessoal não está anestesiado, está é a entrar em coma .Mas como dizia o outro, só é derrotado quem desiste de lutar!

O Filomeno, velho compagnon de route de muitas utopias concordava, repescando triunfal uma velha máxima dos seus tempos de anarca:

-É assim mesmo!O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo!- rematou, seguido dum brinde geral com as minis,no portátil lá foram construindo o site, na net ao menos haveriam de existir. Geração Deolinda, ou ainda não?


 

 

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publicado por Fernando Morais Gomes às 09:26

Ooohh, que cenário!... Infelizmente, é tão real... Mas, como diz o "Diniz", «só é derrotado quem desiste de lutar!»...
D. Colaço a 27 de Fevereiro de 2011 às 10:49

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