Macau, 1557.A carta de D. Francisco Barreto era seca e carregava o peso da autoridade régia: Luís Vaz de Camões, Provedor dos Defuntos e Ausentes da cidade, acusado de irregularidades no exercício das funções deveria abandonar o posto de imediato, mais uma peripécia na já atribulada vida do azarado andarilho e poeta. Na verdade, jocosas redondilhas que publicara em Goa e que o governador não vira com bons olhos levavam agora ao seu afastamento, desamparado e sem dinheiro para sobreviver. Carreira para Lisboa só depois da monção, a alternativa,sobreviver numa gruta em Patane, o tempo vazio consumido a escrever em delirante entrega a história dos lusos, que quanto mais o perseguiam mais ele celebrava em verso, anos engrossando páginas manuscritas, soldado do Império pelo mundo repartido.
Certa manhã, inopinadamente, soldados do Governador acercaram-se da mísera gruta e ordenaram-lhe que os acompanhasse, o capitão do Nau da Prata queria falar-lhe.
O Nau da Prata fazia a carreira anual entre a China e Goa, Francisco Martins, seu capitão-mor carregado de valiosas fazendas detivera-se em Macau para embarque de mercadorias e da guarnição que renderia a de Goa semanas depois. Miseravelmente vestido, só com os papéis que conseguira salvar da gruta, foi levado a bordo à presença do capitão:
-Sois Luis Vaz de Camões, até agora Provedor dos Defuntos e Ausentes desta cidade?
-Sim, malfadadamente sou essa pessoa, que me quereis?
-Tenho ordens de vos levar prisioneiro. E a ferros, ordens expressas.
-E tanta galanteria deve-se a quê, dar-me-eis a mercê de saber?
-Ignoro. Porém, se não criardes problemas poderei permitir que usufruais de liberdade a bordo.Com restrições. Olhando os papéis amarrotados que transportava questionou:
-E isso, que é? Despachos da Provedoria dos Ausentes?
-Não…-respondeu, irónico - tontarias de um português cativo…- aqueles versos, a que já dera vários nomes, agora tituladas Os Lusíadas, gatafunhos ilegíveis, não continham segredo algum, Francisco Martins deixou seguir.
A parafernália das fazendas misturava-se com o cordame e os boçais tripulantes, muitos embarcados em Macau, outros cativos. Camões encostou-se a um canto, contemplando mais um destino perdido, a sua vida de novo repartida nos barcos e enxergas do Império. Absorto no rio das Pérolas, levou tempo a perceber que não longe de si uma jovem nativa o fitava, sorriso pequeno e dócil, sentada sob uma arca com peças de seda, sozinha.
-Estais triste senhor?- perguntou-lhe a medo, sempre o sorriso frágil na pequena cara arredondada.
-A tristeza é minha dilecta companheira e a dor o meu destino.Com tais cativas musas levarei este mar de lágrimas. E vós, quem sois, jovem donzela?
-Não me reconheceis de Patane?
-Acaso pude viver em Patane sem nunca meus olhos terem ficado cativos de tão graciosa presença?...
-Muitas eram as que eram prisioneiras de vossos olhos, senhor…
-E porque nome responde tão bela flor-de-lótus-?
Camões, cativo mas incorrigível galanteador esquecia já a nau onde o haviam aprisionado para se prender agora a outros ferros que um qualquer deus do Olimpo lhe punha à frente.
-Sou Tin-Na-Men, de Patane, e viajo para Goa nesta nau.
-Tin-Na- Men…A Porta do Paraíso. Outro nome não caberia melhor em tão graciosa figura…-galanteou, beijando-lhe a mão.
Tin-Na-Men na verdade embarcara para seguir aquele azarado homem que de longe contemplava em Patane, por vezes falando e esbracejando sozinho, sempre enamorado,todas as mais belas, todas sonetos eternos e redondilhas espontâneas, elas não entendiam mas sorriam, cedendo à paixão do incauto aventureiro.
Uma semana passou, do Mekong ao Indico, Tin-Na-Men e Luís Vaz envolveram-se felizes novo destino se abria para o desgraçado ex-provedor dos ausentes. O capitão-mor, de longe observava, não sem um sorriso complacente, apesar de prisioneiro até simpatizara com o desajeitado, para mais sem um olho, perdido em combate, irmão de armas. Goa, novo exílio era agora amenizada com a pérola de jade que deuses protectores lhe enviavam.
À terceira semana, Zeus no Olimpo decidiu mudar o rumo da viagem, as águas tornaram-se revoltas e piratas das Molucas cercaram a embarcação, mas foram repelidos, Luís Vaz ajudou. Porém, os ventos e a agitação das ondas fragilizaram o Nau da Prata. Francisco Martins mandou baixar as velas, preocupado, mas após forte borrasca, começaram a abrir fendas pelas picas e delgados da popa, descosendo-se em vários lados e cuspindo a estopa e o calafetado. Em desespero, mandou aliviar-se a carga, fazendas e açafrão arremessados borda fora, os canhões rolando num baile perigoso, a quilha desgastada pelas muitas monções e baixos de água em praias do Índico.No Olimpo, Eolos soprava sobre a nau castigador.
Em desespero, o capitão-mor mandou então embarcar as mulheres num batel, uma ilha não muito longe, os homens nadariam contra o mar furioso.
No momento do embarque, Luís e Tin-Na-Men entrelaçaram as mãos, haveriam de se salvar , celebrar o seu amor em Goa. Camões com os seus poucos pertences foi dos últimos a saltar na águas tépida e madrasta,os versos garatujados dentro da camisa. O pequeno batel com Tin-Na-Men e as demais mulheres, depois de desgovernado serpentear alguns minutos foi contudo impiedosamente engolido pelas ondas. A mãozinha frágil submergindo aflita foi a última visão de Luís Vaz, náufrago da vida e órfão do amor.
Em Goa a via sacra da sua desditosa vida prosseguiu, um fugaz amor lhe fora dado e roubado de forma avara pelo destino, Tin-Na-Men, a sua Dinamene ,virara princesa do mar profundo, pérola retornando à concha, pequena e alva. Solitário sobrevivente do amor numa praia deserta daquela Goa sem sentido, a pena lacrimejante do infeliz apaixonado escrevia saudade nas areias brancas e finas:
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo, desta vida, descontente
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te
Quão cedo de meus olhos te levou