Silvério era um tipo de poucas falas, cinquentão carcomido pela vida, dono de um café na Portela de Sintra, um único hobby conhecido,coleccionar canivetes, vinha-os juntando há vinte anos, de vários tamanhos e proveniências, todos com uma história, dizia,sem entrar em detalhes. Odiava os miúdos do liceu, principalmente aqueles que apenas entravam a pedir copos de água ou usar a casa de banho e fazer sala e detestava dar informações, dizendo “Sou novo aqui, acabei de me mudar”, a despachar. Não tinha amigos, não tinha animais de estimação, não tinha parentes vivos, solteirão, nunca tivera uma mulher pela qual não tivesse tido que pagar. Todos o viam como um homem pacífico e comedido, embora pouco falasse de si, exceptuando a arenga contras os políticos e as saudades do tempo de Salazar. Embora estivesse na Portela há mais de vinte anos, poucas pessoas dali podiam dizer que haviam conversado com ele mais de cinco minutos, mas isso não o incomodava nem um pouco, estava ali para trabalhar não para fazer sala.
Renata era uma brasileira que se tinha mudado para a Portela havia apenas dois meses. Perto dos trinta, era uma mulher e peras, olhos verdes, cabelos castanhos, unhas pintadas de vermelho vivo. Sempre que voltava da academia onde trabalhava como personal trainer passava no café do Silvério, roupa justa, formas definidas, sempre sorrindo e exalando um aroma a sabonete de lavanda, misturado com o suor seco dos aparelhos de ginástica, cheiro sensual que não escapava ao olfacto do Silvério.
Um dia de manhã Silvério viu-a pela vidraça da varanda do primeiro andar da casa onde morava, do outro lado da rua a despedir-se do marido que saia para o emprego, vigilante numa empresa de segurança. Usava apenas uma camisa de seda, as pernas descobertas, cara de quem acabara de acordar, com os cabelos um quanto desalinhados. Ainda assim, linda. Linda, angelical e boa demais para ser verdade, aqueles olhos verdes...
No dia seguinte ele acordou um pouco mais cedo, fez o caminho de sempre e quando ia se aproximando da casa de Renata, parou e encostou-se na parede de um prédio próximo, acendendo um cigarro, esperando que ela se despedisse do marido e a carrinha da escola levasse os filhos, de sete e cinco anos respectivamente. Terminou o cigarro e foi para o café.
Todos os dias passou a recostar-se naquela parede, fumando um cigarro e observando de soslaio. Cada dia usava uma lingerie diferente e por vezes trocava de roupa ali mesmo, mal suspeitando que ele a observava, predador.
-São lindas as suas crianças - Silvério tomou coragem e meteu conversa, numa das vezes em que ela entrou para tomar café, depois do ginásio.
-Ai, brigada- respondeu, esboçando um sorriso que ele nunca tinha visto assim tão de perto - Mas elas dão um trabalho... O siô também tem filhos?
-Não. Não sou casado. Mas já fui. A minha mulher morreu. Embolia cerebral- mentiu, simulando um passado enternecedor e triste, ar pesaroso.
-Sinto muito...- E realmente parecia sentir, via naqueles olhos que revelavam bondade e volúpia ao mesmo tempo.
-Tudo bem, o que passou, passou. Não é?
-É verdade. Não podemos viver do passado - rematou, voltando a abrir um sorriso que denunciava uns dentes brancos e perfeitos.
Daquele dia em diante, todas as vezes que passava em frente ao café, Renata cumprimentava, dando um tchau e abrindo um sorriso sincero, às vezes soltava mesmo algum comentário do tipo “Nossa, como tá calor!” ou “Olha, Seu Silvério, acho que vai chover hein. Melhor abrir esse toldo...”.
Um dia Silvério comprou um bouquet de rosas na Odete Florista, e num pronto a vestir da Estefânea uma camisa em seda, de marca, e na manhã seguinte envergando a camisa nova e trazendo o bouquet consigo postou-se junto à parede, acendeu um cigarro e observou Renata despedindo-se dos filhos e depois do marido. Apagou o cigarro, ajeitou a gola da camisa e, com as flores escondidas atrás das costas, foi bater à porta da casa dela.
Ela veio atender, de pijama, curtinho e de seda bordeaux, aquele ele nunca tinha visto. Estava descalça e tinha as unhas dos pés pintadas de vermelho.
-Oi, Seu Silvério. Tudo bem com o senhor? - simpática, atendeu, embora parecesse surpreendida.
-Bom dia Dona Renata, tu... tu...tudo - Silvério gaguejava quando ficava nervoso, e naquela manhã estava particularmente excitado.
-O senhor não está se sentindo bem?
-Está tá tu tudo bem, Dona..na Renata.. ta.
-O senhor está pálido, Seu Silvério!
-Sã são pa..para si - disse, sacando de rompante o bouquet de rosas que tinha escondido atrás das costas.
-Oh... muito obrigado Seu Silvério...
-Nã… não gostaria de… de tomar… mar um ca… café comigo… go?
-Não estou entendendo...
-Um ca… café… fé.
-Não posso aceitar, Seu Silvério, desculpe... O senhor sabe que eu sou casada, não?
-Sim, eu se sei. Mas pe.. pensei que.. que...
-Desculpe, acho que devo ter passado uma imagem errada pro siô. Toma aqui o seu buquê de flores.
-São ro…rosas- rectificou, como se fizesse grande diferença.
-Sinto muito. Não posso aceitar, com licença...- ela começava a sentir-se incomodada.
Quando chegou ao café, Silvério encheu um jarro de água pôs as rosas dentro, e ficou a tarde inteira esperando Renata passar de volta do ginásio. Mas ela não passou, nessa tarde, nem tornou a tomar café. Guardando as rosas, já murchas, encontrou um certo tipo de prazer em despedaçar-lhes as pétalas uma por uma, como se a acariciasse a cada desfolhar.
Uns dias depois, à hora habitual, esperou que ela se despedisse do marido e dos filhos, atravessou a rua e bateu à porta:
-Quem é? –perguntou, de dentro, o barulho da água correndo no duche denunciava um banho a ser preparado, acelerando-lhe o bater da pulsação.
-É dos Censos! -disse, sem gaguejar, fazendo uma voz diferente.
Ela abriu e vendo que era ele ia a despachá-lo quando Silvério forçou a porta, metendo um pé a trava-la e entrou.
-Se gritar eu mato-a! -ameaçou, sacando de um canivete da sua colecção, um que parecia ter sido fabricado exactamente para perfurar o estômago a alguém.
-Não, por favor, não faça isso! Está louco? - Renata começou a desesperar.
-Cale a boca! -mandou, já possesso.
Ela ainda tentou fugir, mas foi impedida nas escadas que davam para a rua, trancando-se com ela por dentro. Com a lâmina do canivete pressionada contra o pescoço, teve de se entregar à vontade de um homem que em nada lembrava o comedido, pacífico e tímido dono do café da frente, no duche a água corria já a ferver, enevoando o espelho da casa de banho. Cada canivete da colecção tinha associada uma história de vida no fio da navalha…