por F. Morais Gomes

28
Mar 11

A avó voltava do supermercado, na solidez dos seus sessenta e quatro anos trazia pizzas e pato, faria aquele espectacular pato com laranja que só ela sabia, arroz tostado e seco e pele crocante, mau para a dieta, retemperador para o estômago. O avô, menos dado à comida apostava antes no peixe, grelhado sobretudo.

Francisco e Teresa desde quase a nascença sempre viveram com os avós, a morte precoce do pai e uma mãe funcionária pública em Lisboa fizera deles os pais de substituição, até gostavam, agora que a filha Sofia  crescera e pouco tinham com que se ocupar, reformados.

Francisco nos seus catorze anos deambulava entre a escola a playstation e a banda larga, sempre enfiado no quarto, a avó certeira todos os dias invariavelmente  às cinco lá lhe levava o lanche favorito, baguette com pasta de frango e uma cola light, era uma querida, até acompanhava os Morangos e sabia quem era a Lady Gaga, o som vindo do My Space de Francisco já a familiarizara, a Teresa até lhe seleccionou a música como toque de telemóvel, embora preferisse o Frank Sinatra, mais soft. Sorriso rasgado, jovialidade de mulher urbana, reformada dos CTT, educava os netos na responsabilidade, apaparicando nas comidas mas exigindo método e ordem lá em casa, desde o  avô aos netos todos tinham de trazer sempre as coisas arrumadas, com horas para comer, quem chegasse atrasado teria de tratar do seu prato e lavar a loiça. Á noite, quando iam dormir não dispensava porém aconchegar-lhes a roupa e o edredon com um terno beijo na testa,enquanto na secretária do quarto, já adormecidos, os bips do Messenger continuavam a debitar chamadas de amigos menos dorminhocos.

Naquele sábado, Sofia tivera de fazer horas extra, a ida ao McDonalds com os filhos ficou adiada para domingo, aborrecidos reclamaram por ter de ficar em casa sem nada para fazer, a casa fora do centro obrigava a deslocações de carro ou transporte, a promessa de um dia de sorna para os dois, saltando entre o Facebook e a MTV, Francisco antevia já um dia a dormir até ao meio dia. O avô, que viera com o carro da revisão entrou de rompante na cozinha pelas oito da manhã e, como Pai Natal em vinte e quatro de Dezembro, bateu com as mãos e chamou a reunir:

-Vá ,vá, todos fora da cama! Vistam-se, que vamos dar uma volta!

-Volta? Onde? - Francisco estremunhado e ainda deitado suspeitava das ideias do avô, alguma ida ao café do Vasco a aturar os amigos do snooker, por certo -Oh avô, que ideia. Ir aonde? Fogo! -virando-se na cama, com a almofada a tapar a cabeça.

-Vamos passear ao Badoca Park, não querem? E almoçamos lá. Vá, vá, que a vossa avó tem de sair também um pouco, toca a vestir! Hoje vamos ver a bicharada, Margarida! - o avô Alcino era um pachola, sempre a contar anedotas, pai de substituição, a chegada da Primavera despertava o prazer do ar livre, iriam por Tróia a ver o novo empreendimento, pela auto-estrada em duas horas estariam lá.

-Tu…- a avó simulava repreendê-lo, mas ficara contente, quando novos faziam isso muito, escapadelas de fim de semana e piqueniques  com os amigos, agora todos já avós, também, mas divertidos.

Meia hora depois, lá rolavam, estrada fora. O avô tirava retratos com a Canon de modelo já ultrapassado, a avó levara umas sandes e torta de coco, o cheiro a pinhal e as emoções do passeio, perigando na visita com a aproximação ao atrelado duma avestruz alucinada querendo bicar, fizeram daquele um dia bem passado, eram uma família, apesar de Sofia mais ocupada estar por vezes ausente, mas compensava quando podia. Naquela noite, ao chegar a casa Francisco ia extenuado mas  feliz no fundo, até editou as fotos do passeio no Facebook , adormeceu sorrindo a recordar a cena da avestruz .

No dia seguinte, atrasado para o pequeno-almoço que a avó servia na sala, ovos mexidos com bacon e compota de cereja com torradas, Francisco abriu-se com a avó, o cheiro a café fresco já adiantara o avô Alcino com uma chávena, folheando o Expresso do dia:

-Sabes uma coisa, avó? Esta noite tive um sonho esquisito. Imagina que sonhei que tinhas morrido?- Francisco estava um quanto impressionado, a avó sorria:

-Ai sim? Deixa lá, é sinal de vida, quando se sonha com mortos é sinal de viver muitos anos!- rematou, a sabedoria popular nunca falha- Então e como é que eu morria?

-Não sei. Era uma coisa esquisita, eu estava de pijama numa gruta, com archotes nas paredes, e ao centro havia três caixões. Num, esticada, estava uma avestruz. No do meio, um esqueleto, de criança, parecia. E no outro estavas tu. A rir, com esse vestido que trazes hoje.

-Isso foi a digestão mal feita. Eu também já sonhei que me saía o Euromilhões mas nunca saiu. Se se sonha é porque é para acontecer o contrário!- o avô, em pé na cozinha, tirava mais uns ovos mexidos.

Francisco foi vestir-se e saiu para o quintal, a Merkel, a cadela basset seguia-o, brincalhona, ladrando e abanando o rabo. A mãe, pela tarde, em dia de folga levou-os finalmente ao shopping, a avó prometia bolo de bolacha e profiteroles com chocolate quente para a sobremesa do jantar quando voltassem.

Pelas seis, estavam já a caminhar para o carro no estacionamento do centro comercial, o telemóvel de Sofia tocou, era o avô Alcino:

-Sim, pai, diga… estou a sair….eu… o quê? Oh meu Deus! Vou já para aí, pai- Sofia parecia em pânico, um choro incontrolável saltou-lhe dos olhos sem controlo.

-Aconteceu alguma coisa mãe?- Francisco ficara assustado, nunca vira a mãe assim.

-Abraça a mãe, Chico. A avó….

-A avó o quê?

-A avó morreu. Teve um ataque fulminante e caiu na mesa da cozinha, estava a fazer o bolo de chocolate. Porquê, porquê?

Francisco ficou estarrecido, na véspera sonhara com aquela morte, como seria possível, ainda de manhã se haviam divertido com a situação.

No velório, a avó sorria deitada naquela caixa escura rodeada de flores, exactamente como a havia visto no sonho. Não parecia morta, antes adormecida, um sorriso sereno denunciava que tinha partido em paz, de bem com a vida, agora para ele com a certeza de não ser eterna nem feliz para sempre. E talvez aborrecida por não ter acabado o bolo de chocolate.


publicado por Fernando Morais Gomes às 13:44

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