O terreiro estava repleto de corpos e os presos da colónia agrícola não tinham mãos a medir em enterros, o doutor Barreiros desdobrava-se em atestados de óbito. A escola primária de S. Pedro de Penaferrim transformada em hospital improvisado testemunhava a ceifa de vidas levadas pela maldita pneumónica, nunca tal vira em S. Pedro.
Desde Maio que a gripe espanhola chegara a Portugal, o Agosto quente e ameno nem por isso afastava o surto epidémico, trazido por rurais vindos do Alentejo, dizia-se, e aí contagiados por espanhóis, os primeiros casos haviam ocorrido em Vila Viçosa. O mais recente fora o filho do Porfírio, rapaz de quinze anos com um arcaboiço de toiro, a maleita não escolhia idades, só em S.Pedro foram sete nessa semana. O rapaz, o Zé Grande aparecera no início da semana com dificuldade respiratória aguda, o contágio viria de visitantes da feira, no domingo anterior. Parando para um café no tasco do Tibúrcio, Alfredo Barreiros limpava a testa suada, mal crendo na mortandade que esse mês já levava.
-Tal está a molenga, doutor Barreiros.Isto até zomba dos médicos como o senhor!- Tibúrcio, aviando um tinto, lamentava as mortes recentes, ele mesmo já tinha medo de abrir a porta, dizia-se muita coisa e muito boato também.
- Nunca vi uma coisa destas, Tibúrcio! Em Lisboa no Convento das Trinas e no liceu Camões tiveram de improvisar hospitais de campanha, e está em curso a criação de uma comissão de socorro cá para Sintra. Até médicos retirados tiveram de ser chamados, imagine!
Do outro lado da rua, trinta e duas enxergas recolhiam os febris pacientes, todos os dias morriam dois a três, o padre Felício e as senhoras da igreja bem rezavam pelo debelar a epidemia, já não bastavam os mortos da Grande Guerra, era o fim do mundo, dizia fatalista a Perpétua, modista na Rua do Roseiral.
- Mas que grande tragédia!- o Tibúrcio não se conformava, bebendo um segundo copo a acompanhar o doutor Barreiros- ouvi dizer que a Câmara vai mandar lavar as ruas com cal e tirar da circulação as notas de tostão, há quem diga que se pega por aí!
O padre Felício chegava entretanto vindo de Lisboa e trazia notícias recentes, logo teria mais uma extrema-unção, o desgraçado não teria mais de umas horas, com sorte passaria a noite.
-Deus esteja convosco! -saudou, vergado nos seus setenta e oito anos- ó Tibúrcio, arranja-me aí um copo de água que sufoco!
-O senhor padre sente-se bem? Aconselho que se afaste da enfermaria, não é bom estar em contacto com os contagiados - Barreiros bem vira a celeridade com que a peçonha atacava.
-Eu já sou velho, doutor, quanto mais depressa for para a casa do senhor mais rápido terei descanso.
-Amén!- concluiu o Tibúrcio, em S. Maria o relógio dava agora as badaladas das seis.
-Parece que o Ricardo Jorge já propôs ao Governo que fechassem as escolas para evitar o contágio, olhe está aqui, no “ Século”- adiantou o clérigo, mostrando a capa do jornal.
-Espero que as coisas não piorem padre, as nossas reservas de quinino e salicilato de sódio estão a rarear. Lá na Vila o Dr. Gregório de Almeida já teve de pedir ao Sintrense que o deixassem montar uma enfermaria lá na Sociedade.
-Até na sede do Benfica está montado um dispensário, disse-me o Castro, que joga lá nas reservas. Isto foi praga dos monárquicos! - Tibúrcio, republicano convicto blasfemava contra o Paiva Couceiro, aquilo era gente que só queria o mal do país - é a política de terra queimada, essa é que é essa! - perorava, paroquial.
De mãos à cabeça, chegava do precário dispensário a D. Adosinda, professora primária e agora enfermeira improvisada, os armários dos cadernos eram agora poiso para algodão e pachos para álcool, incerta a abertura da escola em Outubro, tal a gravidade da coisa:
-Doutor, venha comigo, por favor!- chamava, interrompendo os minutos de descanso do médico, olheiras fundas denunciavam vários dias sem ir à cama.
-Novidades, D. Adosinda?
-Temos de falar ao delegado sanitário, doutor. Mandámos buscar reforço de quinino, imagine que já o vendem a trezentos escudos! Ainda a semana passada estava a setenta. Isto há gente que enriquece com a desgraça dos outros, Virgem Santa!
O padre Felício aí deitou água na fervura:
-Mas olhe, minha boa amiga, no meio da desgraça ainda há gente boa. Ouvi dizer que nos Armazéns do Grandela fazem descontos nas roupas para luto, nunca se viu tanta gente de negro…
Dois presos circunspectos levavam enrolado numa sarapilheira rua acima o corpo de mais uma vítima. À porta do café,Adosinda e o padre faziam o sinal da cruz à passagem, o malogrado era o irmão do Duarte, o carteiro, em quatro dias as febres e o muco apossaram-se-lhe do corpo e desde manhã que delirava, o quinino tardava a fazer efeito, impotente. Duas carretas esperavam no cemitério desde as quatro com os corpos em fila a vez do enterro, antes da noite teriam de os sepultar, bem atolados em baldes de cal por causa do contágio.
Conformado, o doutor Barreiros voltou para o dispensário, Sanches Baena, filantropo de S. Pedro oferecera-se para o que fosse preciso, restava rezar e esperar, as badaladas das sete soavam na igreja e a morte bailava desatinada no arrabalde naquele desgraçado ano de 1918.