por F. Morais Gomes

24
Set 11

Xian, vale do Wei, província de Shaanxi, na antiga Rota da Seda. Com uma bolsa de estudo para aprofundar os estudos de arqueologia, Gilberto chegava à China para seis meses de investigação sobre o antigo Império do Meio. Depois do transfer em Beijing, mais de doze horas após a partida de Frankfurt, era o mergulho na China Central, numa cidade milenar onde o progresso chegara de rompante com a silenciosa revolução de Deng Xiaoping, o Pequeno Timoneiro, que suavemente enterrara a herança de Mao.

Instalado num hotel para estudantes, muitos da Manchúria e Guangzhou, a tradicional delicadeza dos chineses, sobretudo os de etnia han, facilitou a integração. Só ao segundo dia se apresentou na Universidade, onde o professor Siu o aguardava já, tal como a Vitautas, um lituano que com Gilberto colaboraria nos estudos sobre civilizações antigas.

Xian fora um centro cultural no século XI A.C com a fundação da Dinastia Zhou, quando a capital foi estabelecida em Fēng, um pouco a oeste da cidade actual. Após o período dos Estados Combatentes, a China foi unificada durante a Dinastia Qin, com a capital em Xianyang, um pouco a noroeste da actual Xian. Foi o primeiro imperador da China unificada, Qin Shihuang quem ordenou a construção do famoso exército de terracota e seu futuro mausoléu pouco antes da sua morte,aí seria o centro principal das actividades de Gilberto sob orientação do professor Siu, o arqueólogo-chefe.

Era um ambiente agradável, com as montanhas Qinling a sul e o rio bordejando a cidade, chegado no verão não foi sem surpresa que foi recebido por algumas trovoadas. Jovem e movimentada, a cidade era atractiva, e a comida saborosa, no centro, modernas discotecas de música alternativa ofereciam um panorama com que não contava tanto, preferindo contudo os tradicionais espectáculos de ópera qinqian.

Para um arqueólogo, a cidade era um manancial: os túmulos dos reis da dinastia Zhou, mausoléus e tumbas da dinastia Han,  algumas com esculturas de soldados de argila, eram contudo as figuras em terracota enterradas junto ao mausoléu do primeiro imperador Qin Shihuang, entre 259-210 A.C., o que mais  atraía. Visitando o local, a gravidade e aspecto marcial daqueles guerreiros enterrados transportaram-no para essa época distante, quase podendo ver os mesmos deslocando-se marciais pelo planalto central, às ordens de Qin. Entusiasta, o professor Siu contava a história, o trabalho do grupo agora chegado seria a abertura de nova vala a noroeste da actual, onde se supunha estar outra secção do vasto exército enterrado, pelo que logo no dia imediato, convenientemente vestidos e equipados, partiram para o local, quais Indiana Jones mal podiam esperar até escavar o primeiro metro de terra. A construção do mausoléu começara em 246 a.C. e acredita-se que foram precisos mais de setecentos mil trabalhadores e artesãos  para o completar ao longo de quarenta anos. De acordo com o historiador Sima Qian, o imperador fora enterrado em 210 a.C,  juntamente com tesouros e objectos artísticos, bem como com uma réplica do mundo onde pedras preciosas representavam os astros, pérolas os planetas e lagos de mercúrio os mares.

Durante os primeiros dias, nada senão terra e raízes surgiam do árido terreno, trovoadas frequentes obrigavam a interromper os trabalhos, aos poucos, a rotina obrigava a serenar os ímpetos de grandes descobertas no imediato. A tumba ficava perto de uma pirâmide de terra com 47 metros de altura e 2 quilómetros quadrados de área e o medo de erosão provocada pelas chuvas obrigava a especiais cuidados, pois a terracota era literalmente terra, cozida em fornos a baixa temperatura. Após cozer cada figura, ela era então coberta com uma camada de laca, para lhe aumentar a durabilidade. Mais de oito mil figuras haviam sido escavadas até esse momento, incluindo soldados, arqueiros e oficiais, todas em poses naturais. Para Gilberto e restante equipa, contudo, nada de vestígios novos a noroeste, talvez os estudos do professor Siu estivessem errados.

Já ao fim de dois meses, jantando um pato lacado no hotel de estudantes, numa noite em que chovia copiosamente, o empregado da recepção, conhecedor dos motivos da vinda do português à China, chamou-o de parte, e, pedindo silêncio, sugeriu-lhe que cavassem quinhentos metros a sul, exemplificando com um desenho. À pergunta da razão de tal convicção,  o jovem nada disse, e voltou para o seu portátil. Gilberto ficou intrigado, por mera curiosidade nessa noite foi passear na zona indicada, mas haviam apenas arbustos e nem sequer continuação física com o mausoléu. Pelo sim pelo não, no dia seguinte sugeriu ao professor uma deslocação para sul, o que ele rejeitou, todos os indícios apontavam a noroeste. Mas o rapaz do hotel deixou Gilberto intrigado, e nos dias seguintes foi metendo conversa com ele. Chamava-se Qin, tinha vinte anos e para além do hotel,passava o tempo criando jogos de estratégia militar no computador, sobre a “dica” sugerida nada mais adiantou. Movido pela curiosidade, desafiou Vitautas a escavarem por conta própria durante as férias no campus, com o professor ausente em Xangai num simpósio arqueológico. Três dias insistiram, escavando, até que uma cabeça, semelhante às já conhecidas, emergiu da terra onde estava soterrada, as armas e armaduras reais utilizadas esculpidas no corpo, não deixavam dúvidas: era um novo guerreiro, logo seguido de outros, uma nova ala, regressado o professor, atónito, continuaram nessa zona a sul, até que um novo núcleo de guerreiros ficou exposto, catapultando o português e o lituano para a história da arqueologia.

Alinhadas no fosso sul as novas peças, quase todas em bom estado, Gilberto, Vitautas e o professor Siu posaram junto a elas semanas depois para uma equipa do National Geographic, repórteres da CCTV da China não largavam o português, herdeiro de Carter, o descobridor de Tutankamon, satisfeito, Gilberto saboreava. No momento em que terminava a foto ao lado dos novos guerreiros, olhando o da sua direita, a cara deste, por sortilégio, ganhou vida, olhando-o sorridente e altivo. Passada a estupefacção, a cara pareceu-lhe familiar. Era Qin, o recepcionista do hotel, que sem que os outros o pudessem ver, piscava o olho a Gilberto, aprisionado na estática e milenar farda de guerreiro em terracota. Qin Shihuang, fundador da dinastia Qin, por razões inexplicáveis renascido dos mortos e à cabeça do seu exército imperial emergido das estranhas da terra.

publicado por Fernando Morais Gomes às 07:17

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