Xian, vale do Wei, província de Shaanxi, na antiga Rota da Seda. Com uma bolsa de estudo para aprofundar os estudos de arqueologia, Gilberto chegava à China para seis meses de investigação sobre o antigo Império do Meio. Depois do transfer em Beijing, mais de doze horas após a partida de Frankfurt, era o mergulho na China Central, numa cidade milenar onde o progresso chegara de rompante com a silenciosa revolução de Deng Xiaoping, o Pequeno Timoneiro, que suavemente enterrara a herança de Mao.
Instalado num hotel para estudantes, muitos da Manchúria e Guangzhou, a tradicional delicadeza dos chineses, sobretudo os de etnia han, facilitou a integração. Só ao segundo dia se apresentou na Universidade, onde o professor Siu o aguardava já, tal como a Vitautas, um lituano que com Gilberto colaboraria nos estudos sobre civilizações antigas.
Xian fora um centro cultural no século XI A.C com a fundação da Dinastia Zhou, quando a capital foi estabelecida em Fēng, um pouco a oeste da cidade actual. Após o período dos Estados Combatentes, a China foi unificada durante a Dinastia Qin, com a capital em Xianyang, um pouco a noroeste da actual Xian. Foi o primeiro imperador da China unificada, Qin Shihuang quem ordenou a construção do famoso exército de terracota e seu futuro mausoléu pouco antes da sua morte,aí seria o centro principal das actividades de Gilberto sob orientação do professor Siu, o arqueólogo-chefe.
Era um ambiente agradável, com as montanhas Qinling a sul e o rio bordejando a cidade, chegado no verão não foi sem surpresa que foi recebido por algumas trovoadas. Jovem e movimentada, a cidade era atractiva, e a comida saborosa, no centro, modernas discotecas de música alternativa ofereciam um panorama com que não contava tanto, preferindo contudo os tradicionais espectáculos de ópera qinqian.
Para um arqueólogo, a cidade era um manancial: os túmulos dos reis da dinastia Zhou, mausoléus e tumbas da dinastia Han, algumas com esculturas de soldados de argila, eram contudo as figuras em terracota enterradas junto ao mausoléu do primeiro imperador Qin Shihuang, entre 259-210 A.C., o que mais atraía. Visitando o local, a gravidade e aspecto marcial daqueles guerreiros enterrados transportaram-no para essa época distante, quase podendo ver os mesmos deslocando-se marciais pelo planalto central, às ordens de Qin. Entusiasta, o professor Siu contava a história, o trabalho do grupo agora chegado seria a abertura de nova vala a noroeste da actual, onde se supunha estar outra secção do vasto exército enterrado, pelo que logo no dia imediato, convenientemente vestidos e equipados, partiram para o local, quais Indiana Jones mal podiam esperar até escavar o primeiro metro de terra. A construção do mausoléu começara em 246 a.C. e acredita-se que foram precisos mais de setecentos mil trabalhadores e artesãos para o completar ao longo de quarenta anos. De acordo com o historiador Sima Qian, o imperador fora enterrado em 210 a.C, juntamente com tesouros e objectos artísticos, bem como com uma réplica do mundo onde pedras preciosas representavam os astros, pérolas os planetas e lagos de mercúrio os mares.
Durante os primeiros dias, nada senão terra e raízes surgiam do árido terreno, trovoadas frequentes obrigavam a interromper os trabalhos, aos poucos, a rotina obrigava a serenar os ímpetos de grandes descobertas no imediato. A tumba ficava perto de uma pirâmide de terra com 47 metros de altura e 2 quilómetros quadrados de área e o medo de erosão provocada pelas chuvas obrigava a especiais cuidados, pois a terracota era literalmente terra, cozida em fornos a baixa temperatura. Após cozer cada figura, ela era então coberta com uma camada de laca, para lhe aumentar a durabilidade. Mais de oito mil figuras haviam sido escavadas até esse momento, incluindo soldados, arqueiros e oficiais, todas em poses naturais. Para Gilberto e restante equipa, contudo, nada de vestígios novos a noroeste, talvez os estudos do professor Siu estivessem errados.
Já ao fim de dois meses, jantando um pato lacado no hotel de estudantes, numa noite em que chovia copiosamente, o empregado da recepção, conhecedor dos motivos da vinda do português à China, chamou-o de parte, e, pedindo silêncio, sugeriu-lhe que cavassem quinhentos metros a sul, exemplificando com um desenho. À pergunta da razão de tal convicção, o jovem nada disse, e voltou para o seu portátil. Gilberto ficou intrigado, por mera curiosidade nessa noite foi passear na zona indicada, mas haviam apenas arbustos e nem sequer continuação física com o mausoléu. Pelo sim pelo não, no dia seguinte sugeriu ao professor uma deslocação para sul, o que ele rejeitou, todos os indícios apontavam a noroeste. Mas o rapaz do hotel deixou Gilberto intrigado, e nos dias seguintes foi metendo conversa com ele. Chamava-se Qin, tinha vinte anos e para além do hotel,passava o tempo criando jogos de estratégia militar no computador, sobre a “dica” sugerida nada mais adiantou. Movido pela curiosidade, desafiou Vitautas a escavarem por conta própria durante as férias no campus, com o professor ausente em Xangai num simpósio arqueológico. Três dias insistiram, escavando, até que uma cabeça, semelhante às já conhecidas, emergiu da terra onde estava soterrada, as armas e armaduras reais utilizadas esculpidas no corpo, não deixavam dúvidas: era um novo guerreiro, logo seguido de outros, uma nova ala, regressado o professor, atónito, continuaram nessa zona a sul, até que um novo núcleo de guerreiros ficou exposto, catapultando o português e o lituano para a história da arqueologia.
Alinhadas no fosso sul as novas peças, quase todas em bom estado, Gilberto, Vitautas e o professor Siu posaram junto a elas semanas depois para uma equipa do National Geographic, repórteres da CCTV da China não largavam o português, herdeiro de Carter, o descobridor de Tutankamon, satisfeito, Gilberto saboreava. No momento em que terminava a foto ao lado dos novos guerreiros, olhando o da sua direita, a cara deste, por sortilégio, ganhou vida, olhando-o sorridente e altivo. Passada a estupefacção, a cara pareceu-lhe familiar. Era Qin, o recepcionista do hotel, que sem que os outros o pudessem ver, piscava o olho a Gilberto, aprisionado na estática e milenar farda de guerreiro em terracota. Qin Shihuang, fundador da dinastia Qin, por razões inexplicáveis renascido dos mortos e à cabeça do seu exército imperial emergido das estranhas da terra.