por F. Morais Gomes

22
Nov 11

Manhã cinzenta e ventosa, alheia, a serra eléctrica empunhada por vulto amarelo e vermelho avançava segura para a execução da sentença: o abate. Culpadas de antiguidade, de folhagens invasivas, de suspeitas alergias, demasiadamente verdes e roubando espaço aos carros, esses novos habitantes, formigueiros e anacrónicos buscando espaço na Vila.

D.Ermelinda, chegando à janela onde o Tareco já se instalara vendo a agitação, ainda no roupão coçado e rolos no cabelo, apressou-se a aplaudir:

-Já não era sem tempo! Estas árvores só fazem é moléstia! Ó sr.Arlindo, ainda a semana passado caiu aqui uma ramagem que me partiu um vaso da varanda!- comentou para o Arlindo do talho, que chegando à porta assistia às manobras, um segundo carro ia recolhendo os galhos logo transformados em serradura.

-Isto queria era tudo abaixo, menina Ermelinda!- sentenciou o talhante para a velha solteirona. E se fossem todas, não se perdia nada, que o que faz aqui falta é estacionamento! -acrescentou, antevendo já mais dois ou três lugares para os clientes, que assim, mais comodamente encostariam a comprar bifes e enchidos das melhores proveniências.

Um plátano e duas tílias, sentinelas de décadas perfumando a Vila, tombaram em meia hora. Desolada, a rua deixava a descoberto rachas e mazelas no velho casario, que a sombra e porte das malogradas árvores escondiam, a cúpula dos paços do concelho via-se agora nitidamente, enquanto os homens de amarelo e vermelho avançavam para a rua seguinte.

Sempre atento, chegou entretanto Pedro Nogueira. Jornalista aposentado, dedicava-se agora a um blogue que criara para denunciar situações destas. Sintra ia soçobrando de ano para ano, sob a ameaça do cutelo, só ele e um punhado mais se interessavam por manter as árvores, no mínimo que se explicassem razões, ouvissem os moradores, uma vez mais os burocratas do machado levavam a melhor.Junto do suposto chefe quis apurar motivos:

-Desculpe lá, amigo, quem ordenou o abate destas árvores? Trabalham para quem?

Um gordo com ar boçal e bigode farfalhudo, olhando de soslaio e  medindo-o de alto abaixo, escarrando para o lado, despachou o Nogueira com ar de quem não tem de dar explicações:

-Isto é ordem da Câmara! Está tudo podre, não vê? Olhe, esta aqui mais uma semana e era capaz de cair em cima do telhado ali!- rosnou, apontando o prédio da Ermelinda, onde o gato, o  Tareco, se instalara para assistir às operações- Eu aqui só cumpro ordens, mas por mim iam todas, isto só faz é lixo!- rematou, afastando-se a dar ordens a um brasileiro que do alto da grua ia decepando a tília lentamente.

Pedro ia tirando fotos, chegariam tarde, mas mostrariam a execução antes do trânsito em julgado da sentença. Chegado o Rodrigo, dum grupo ambientalista, tentou ainda demover do abate. Nada a fazer, era uma empreitada, quando mais rápido melhor, a ver se a Câmara pagava antes do Natal. Com a crise, este trabalhito vinha a calhar, havia que despachar.

-Então e é para plantar aqui o quê, agora?- sondou Rodrigo, mandando SMS para vários lados.

-Isso já não é connosco. Por mim, nada. É alcatroar e limpar. Não acha que já há árvores a mais? Não lhe chega a serra, cheia de secos e matagal? Também é desses amigos das florzinhas?- desdenhou o capataz, ordenando a progressão para a árvore seguinte. Queixem-se ao Totta, que eu a mim tanto se me dá!

A meio da manhã um descampado nu e desolador deixava expostas as portadas em ruínas da casa da Ermelinda. O Fidélio do café ainda sondou um dos homens, tentando levar lenha para casa, secaria no telheiro. Analisando o tronco viril e de decénios, nada denunciava as supostas doenças. Pedro ia recolhendo provas da execução sumária, meneando a cabeça, posto que se ia consumando a purga. Fotos dos troncos mostravam que mais uns anos durariam por certo:

-É o que dão as obras mal feitas, amigo Pedro!- consolou o Rodrigo, a preparar um comunicado de repúdio da sua organização. Enfiam-se manilhas, cabos, ferem-se as raízes, e depois fica fácil justificar os abates. É este o país que  temos!- rematou, colando-se ao telemóvel.

A chuva engrossava. Com o chá ao lume, a Ermelinda voltou para a cozinha, o Tareco ronronando junto às pernas, o Arlindo voltou para o talho a aviar dois frangos para a D.Lurdes da retrosaria, chegando  o meio dia, os da serra partiram para o ritual almoço, ritmado pela sirene dos bombeiros soando ao longe. No dia seguinte, cantoneiros da Câmara replantariam com granito o sítio onde durante anos floresceram árvores, agora só guardadas na sépia dos postais, ou na objectiva revoltada do Pedro. Felizmente para a Ermelinda, não teria de se preocupar mais com o anti-alérgico de sete euros, respiraria agora ar puro e a luz, acolhedora invadiria o saguão para felicidade do Tareco, já velho de sete vidas, Em S.Martinho, as doze badaladas pontuavam o dia, malogradas, as árvores não morreriam de pé.

Foto do blogue Rio das Maçãs

publicado por Fernando Morais Gomes às 11:21

Aqui na terra onde estou emprestado (já relativamente ansioso por regressar a casa), também dão cabo das árvores todas. Queixam-se das raízes, que levantam os passeios, etc. Deve estar na altura de se inventarem umas árvores sem raízes nem folhas, para ver se as deixam sossegar um pouco mais.
Gostei de ler. A referência ao Pedro diz-me qualquer coisa :-)
Abraço.
Zé Maria a 22 de Novembro de 2011 às 15:46

É, este Pedro é capaz de ser familiar....
Fernando Morais Gomes a 22 de Novembro de 2011 às 16:15

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