por F. Morais Gomes

25
Dez 11

Arnaldo raramente ia à praia, enfiado naquele sótão da Rinchoa onde escrevia poemas que ninguém lia, tesouro da sua gaveta, confessionário dum ser torpedeado de inseguranças e fantasmas. Existia sem viver. Depois da consulta no hospital, na véspera de Natal, e a notícia de um fim próximo, tabaco fazendo das suas, sentiu a necessidade de estar perto da água salgada, sentir o cheiro límpido do iodo. A consoada passou sozinho, no dia de Natal, pela manhã, aterrou na esplanada deserta da Praia Grande sequioso de whiskies duplos. Ninguém nos ensina a morrer, todos os dias da vida, porém, são intervalos que a morte nos concede, sabia-o agora.

Um cancro no pulmão intrometia-se, indesejável. No início, a surpresa, a hipótese do engano, a segunda opinião. Depois, o desespero, presença insuportável, lágrimas, mágoa, as dores como companheiras mais chegadas. Estava só, naquela morte de viver, os livros que nunca editaria, tudo comprometido por um corpo frágil e tangível, qual anjo caído, pecador, mergulhado em culpas secretas a quem iam faltando asas para voar. Exaurido do mundo, exaurido de si, talvez finalmente descansasse. Em volta, uma casa amarela expelia o fumo duma lareira que por certo crepitara toda a noite, crianças alegres dormiriam  agarradas aos brinquedos que apesar da crise os pais não lhes terão com sacrifício negado.

Antevia já a campa inerte onde poucas flores lhe iriam levar, uma lápide burocrática e igual a todas as outras, ninguém para lembrar a obra por editar, só um solitário funcionário do registo civil escrevinhando em guardanapos de papel na mesa da leitaria do bairro, obras-primas da sua gaveta secreta, fumando os três religiosos maços de cigarros diários. Agora acendia mentalmente o cigarro, e fumava em imaginação, comprara até um isqueiro de plástico para se enganar. A quimioterapia fazia das suas, os cabelos caíndo agarrados ao pente, a tosse purulenta, os olhos inchados.

Uma vez mais pegou na caneta e num guardanapo de papel e ensaiou um testamento, requiem dos bens que não tinha, para uma família que há muita perdera. Quando tudo acaba, há a tentação absurda de escrever para imortalidade. Redigiu umas linhas, levantou-se, passeando no areal, deixando um trilho de pegadas na areia molhada. Ignorou o médico, e fumou um dos cigarros assassinos, o mal estava feito, afinal.

À noite, a roupa foi encontrada numa rocha, o corpo nunca apareceu. Um empregado da esplanada, limpando as mesas, deu com um pequeno papel amarrotado dentro de um cinzeiro, curioso, foi ler.”Hoje começa o dia de amanhã”. Refastelada de coscorões e cabrito, uma família passeava pela falésia, respirando o vento frio e purificador do Natal.

 

publicado por Fernando Morais Gomes às 11:20

Dezembro 2011
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

11
12
13
14
15
16
17

18
19
21
22
23
24

28
29
30
31


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO