por F. Morais Gomes

26
Dez 11

Desde criança Roberto se habituara àquelas rotinas domingueiras: a missa das 10 com a avó Sara, em S.Martinho, a catequese com o padre Mateus, nariz em forma de gavião, sempre pronto a ameaçar com o Inferno o venal pecado de rir nas aulas de Religião e Moral, desfilara até vestido de anjinho numa procissão do Senhor dos Passos, enfiado num cetim branco com asas que a Ermelinda levara uma semana a coser. Com os anos, afastara-se das igrejas, apenas revisitadas para casamentos e missas de corpo presente, era como voltar a um sítio estranho, desconhecedor da liturgia moderna, embora fascinado pelos vitrais e talha dourada, nisso se revia, mais pela mão do homem que pelos totens a que os artefactos se dirigiam.

Passados os quarenta e separado de Matilde, voltara a passar o Natal com a mãe em Sintra, devota, D. Idalina não dispensou a missa matinal em S.Martinho no dia seguinte ao Natal, a custo arrastou Roberto e o pequeno Fábio. Rendido ao espírito da data, Roberto lá se deixou levar, mal não faria, o prazer dum momento raro com as três gerações, normalmente separadas, levou-o a ceder, se bem que  aguardasse sentado numa cadeira do fundo, contemplando os santos e aquele cheiro a flores frescas, geralmente cheiro a mortos, das coroas que rodeiam os caixões nos rotineiros velórios que de vez em quando tinha de acompanhar.

Na sacristia, a velha Almerinda trocava as jarras e ia acendendo as velas, num ritual de anos desde que enviuvara do Américo do talho, Roberto, agora em Lisboa, deixou-se levar pelo silêncio ritual dos preparativos, perto do T1 na Expo onde morava nada disto havia já, o silêncio da igreja tranquilizou-o, logo interrompido pela necessidade de fumar um cigarro. Saiu a ver as vistas,faltavam uns minutos para a missa, a caminho da Periquita viu passar o Gregório, velho colega do liceu, não o via há muito e correu a abraçá-lo, recordando o futebol de salão e os anos nos juniores do Hóckey de Sintra:

-Gregório! Então, pá? Há quantos anos!Estás na mesma,velho amigo! Essa barriguinha é que…- Roberto ficou feliz de o rever, já nos quarenta também, há anos que não se encontravam. Soubera que tinha ido para Filosofia, ele seguira Económicas, mas acabara jornalista em Lisboa, o Natal e o fim de semana com o filho para o Natal, traziam-no a Sintra para o miúdo estar com a avó, o pai falecera há poucos meses, sentia-se na obrigação de passar o Natal com a mãe, na velha casa nos Pisões.

-Venham de lá esses ossos, grande Roberto!- o Gregório, com uma cara abolachada e óculos de massa, abraçou o amigo, uma barba rala e já esbranquiçada era a principal diferença que lhe notava, de resto  encontrava o Roberto da sua infância igual, com aquele ar engatatão que levara à certa as miúdas de meia Sintra nos bons anos oitenta - Vais à missa?- questionou o Gregório, vendo-o perto da entrada de S.Martinho.

-Que remédio, a minha mãe teimou, e sabes, com a idade, é melhor fazer-lhe a vontade. Para mais está com o neto. Eu, igrejas, é como o diabo da cruz. Vim para aqui fumar um cigarro….

Gregório sorriu, insistindo com o amigo:

-Deixaste de acreditar em Deus, Roberto? Tu, que eras o anjinho favorito do padre Mateus?- Gregório provocava o amigo, que dava uma passa no cigarro quase terminado. Roberto teorizou:

-Nunca leste o Christopher Hitchens, que morreu há duas semanas? Escreveu um livro "Deus não é grande – como as religiões envenenam tudo". O gajo descrevia-se como um crente nos valores do iluminismo, e achava que o conceito de Deus ou de um ser supremo é uma crença totalitária que destrói a liberdade individual. Só a livre expressão e a investigação científica deveriam substituir a religião como um meio de ensinar ética e definir a civilização humana. Estou como ele!

Gregório fez uma pausa, e pondo o braço no ombro do amigo retorquiu:

-Sabes, Roberto, é mais fácil meter Deus debaixo do tapete que eliminá-lo para sempre. Porque, agnósticos, ateus ou meramente revoltados, todos somos capturados pela ideia de Deus desde que nascemos, e quando achamos que o podemos tratar por tu, já ele nos moldou o ser e o comportamento, desde quando ainda não tínhamos disso noção. Assim, negar Deus é sempre uma atitude reactiva, nunca pró-activa. Não se discute Deus, nega-se ou venera-se, e esse tipo de atitude é sempre irracional, daí que o ateísmo nunca possa ser científico mas apenas uma corrente de negação, uma moda, se quiseres.

-Pessoalmente, meu velho, a minha postura é: não acredito em Deus!- e o bosão de Higgs acabará por o “matar”, enquanto chave do universo. Contudo, uma coisa te admito: acredito nos que acreditam. O homem é um ser de crenças. É aliás o único animal que distingue a água da água benta, como alguém um dia escreveu. Muitos dos que buscam respostas para as inseguranças, refugiam-se em algo a que chamam fé, e quando os seus desejos por conjugação de factores inesperados ocorrem, chamam a isso milagres. Acontece o mesmo nas ortodoxias comunistas, com outros santos, altares e sacerdotes. Vê lá a Coreia do Norte!O Freud já explicou isso tudo!

Gregório sorriu, indulgente. Com a torre da Vila a dar as dez, olhou o relógio e apressou-se, combinando com Roberto voltarem a ver-se em breve e deixando no ar um comentário final:

-Será negativo acreditar e ter fé? Quando a fé contribuir para acentuar valores como os da liberdade, livre arbítrio e solidariedade, nada a apontar. É certo que em nome de muitas fés se matou e destruiu, em nome de fanatismos a que se chamou fé, e intolerâncias a que se chamou conversão. Há muita floresta para lá de certas árvores, meu velho. Dá um beijo à tua mãe e ao teu filho!. Se calhar ainda os vou ver por aí…

Voltando para a porta da igreja, já composta lá dentro, a missa estava prestes a começar, Fábio, em silêncio, sentava-se numa fila da frente com a avó, terminando o cigarro, Roberto deixou-se estar à entrada, em pé, mirando aquele cenário e cheiro que até aos catorze anos lhe haviam sido familiares. Disparando, a música do órgão anunciava o início da missa, todos em pé saudavam a entrada dos celebrantes. Curioso, Roberto espreitou, a ver se o velho padre Mateus ainda estava na mesma, vindos da sacristia, nenhum dos três vultos se parecia com ele. Aproximou-se um pouco e atrás dumas vestes brancas com sobrepeliz verde e mitra, reconheceu o Gregório. O velho amigo do Hockéy com quem palestrara minutos antes, era afinal o pároco de S.Martinho. Aproximando-se um pouco das filas do meio, sorriu para o antigo companheiro, que, abrindo os braços, dando início da missa, lhe piscou o olho, cúmplice, como quando marcavam golos no velho ringue do Parque da Liberdade.

-O Senhor esteja convosco!- saudou, alegre e bem disposto o padre Gregório.

-Ele está no meio de nós! -respondeu a assembleia em coro, acompanhada por Roberto, sussurrando, uma missa de quando em quando não faria mal por certo.

publicado por Fernando Morais Gomes às 10:49

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