por F. Morais Gomes

22
Abr 12


Eram quatro horas e um desejo súbito de pipocas apressou Tiago para a cozinha, um pacote de vinte cêntimos no micro-ondas e estava arranjado o bulímico complemento para trabalhar na reportagem sobre a Islândia. Sílvia estava estranha, saíra a pretexto dum visita à avó no lar onde há dois anos a haviam depositado, remorso talvez, a crise a fazer descer à terra e devolvendo a zombies consumidores pelas vielas de néon dos hipers alguma humanidade.

Era bom um pouco de silêncio. Pensou pôr música, mas deixou-se ficar com o som de fundo dos carros na rua, tentando respirar a casa onde pouco tempo passava, intervalo entre a fila do trânsito, o emprego stressante e os soundbytes da crise, essa palavra invasora como osga pegajosa. Um velho vinil dos Pink Floyd no armário da sala reportou-o para anos antes, quando conhecera Sílvia no 2001, magra, felina, com um olhar distante. Era o seu álbum favorito. Já não pick up tinha, para o poder tocar, tinha-se porém dado ao trabalho de digitalizar fotos antigas, todas num ficheiro salvas do passado e dos ácaros.

Muita coisa mudara desde então. Até de pipocas passara a gostar, esse adereço capitalista parceiro da caramelizada mistela americana que em tempos significara o imperialismo yankee. Escritor na juventude, fã de Elluard e Herberto, dedilhava agora os artigos para o jornal num Ipad de nova geração, pecadilho a que não resistira, pago em três prestações. Escrevia e de quando em quando fixava o relatório que o dr.Pestana lhe entregara como quem anuncia a mobilização para o Ultramar: calhara-lhe a ele, aquele ponto negro no TAC. Não, infelizmente não era defeito do aparelho, asseverara insolente o dr.Pestana.

Sílvia, nada deveria saber, por enquanto. Já vasculhara a Wikipédia e a Britanica e todos os sites e fóruns na net, não havia dúvidas. Cancro do cólon, uma desenganada via sacra de tratamentos em perspectiva. O cheiro das pipocas era apelativo, e devorou-as num ápice, rematando com um improvável Jameson, virtuoso analgésico para as irritantes arrazoadas do Pestana, esse charlatão, lampião ainda para mais, uma segunda opinião esclareceria a incompetência.

Um ruído abafado anunciou um SMS. Era Sílvia, perguntando o que queria jantar, passaria pelo Modelo depois da visita à avó. Ia a escrever algo, mas de súbito mudou de ideias, e digitou uma resposta: “Vai ter ao bar do Fred. Vamos jantar fora”.

Um ok seguido dum smiley sinalizou que a ideia agradara. Largou o teclado e serviu-se de mais um Jameson, na rua o velho Joaquim seguia curvado a caminho da tasca do Jacinto, para o ritual tinto das cinco. Meteu-se no chuveiro e deixando cair a água quente o filme dos últimos dias foi-lhe passando húmido e vaporoso: a cara do Pestana, a tarde desse dia guiando sem destino como quem levara um murro no estômago, o romance histórico que levava a meio,  raivoso agora por os personagens estarem felizes, havia que matar um para espalhar a depressão.

Disfarçando e salpicado com o after shave favorito de Sílvia, dirigiu-se ao bar do Fred, numa tela gigante passava um jogo do campeonato inglês, o Simão e o Quim Zé, amigos habituais puxavam pelo Manchester, devorando minis mais rápido que Fergurson pastilhas. Um cumprimento ritual saudou o encontro, Sílvia não chegara ainda.

-Tiago! Chega aqui e bebe um copo com a gente! Ninguém te põe a vista em cima, pá. Não me digas que te deu a ternura dos cinquenta!-o Quim Zé andara com ele na tropa, nos anos 80, quando ele fora trabalhar num jornal local, abrira uma oficina onde regularmente Tiago ia mudar o óleo, pachorrento, despachava o prato de tremoços depois da quarta mini. Tiago ensaiou um sorriso, e juntou-se aos amigos. Pediu uma mini e sentou-se, pouco falador, o ruído da sala era de quando em quando entrecortado com um ou outro grito puxando pelo Manchester, três dias apenas haviam passado desde a horrorosa  consulta com o Pestana.

-Sabes quem morreu? O Aníbal, das Finanças. Um AVC, durante um almoço com os colegas. Nem cinquenta tinha! Temos de por a barba de molho, que eles andem aí….- comentou o Simão, já com sentença de diabetes lida. Tiago espantou-se, murmurando um quase silencioso “pois…”.

Sílvia chegou entretanto. Apesar de como Tiago rondar os cinquenta, a beleza da juventude parecia não largá-la, o ar maduro tornara-a mais sensual. Num flash, Tiago imaginou-a de preto, depois de ter partido, ali, disponível para aqueles devoradores de tremoços, ser-lhe-ia fiel depois de enviuvar? Um beijo rápido e um alô aos amigos e pediu um café, sentando-se junto a eles. Tiago puxou conversa:

-E a tua avó?...

-Está muito velhinha, coitada. Perguntou pelo irmão, o tio Alfredo, que já morreu há dez anos. Quando se chega a estas idades….

Tiago fez silêncio, queria sair dali para a ter só para si, num canto dum restaurante. Italiano, se possível. Queria contar-lhe tudo, o ambiente caloroso dum chianti e uns canneloni tornaria a coisa menos fria e cruel.

-Olha, quando vinha para cá encontrei o doutor Pestana no shopping. Mal me viu veio a correr ter comigo, disse que tinha estado toda a tarde a tentar ligar-te, mas não conseguiu. Pede para lhe ligares com urgência.

Tiago enregelou. Mais más notícias, e todas do médico. Maldito Pestana, nem no shopping. Sílvia notou-lhe um desconforto com a notícia, e olhou-o nos olhos:

-Algum problema….?

-Não, nada, foi ele que me pediu uma coisa lá do jornal, depois ligo-lhe…

Fazendo menção de ir à casa de banho, Tiago ligou ao médico. O semblante estava lívido e as mãos trémulas, Sílvia ficou a perguntar pelos filhos de Simão.

Dez minutos depois, Tiago voltou, dirigindo-se ao Fred, a voz estava mais solta e aparentemente bem disposto. Na tela, o Manchester despachava o adversário com três bolas sem resposta.

-Fred! Uma rodada para todos, pago eu!

-Estás a festejar o Manchester agora, Tiago? Fazia-te mais do Real Madrid!- o Quim Zé estranhou tanta fartura, Tiago não era muito dado a largueza de bolsos. Com um sorriso, Tiago roubou um beijo a Sílvia e rematou, enigmático:

-Não, sou mais de outro campeonato. Mas o meu clube ia acabar a partida a perder, e afinal parece que vai haver prolongamento….-do outro lado, o Pestana desfizera-se em desculpas, os exames haviam sido trocados e ele estava são como um pêro.

-Amor, e se depois do jantar fossemos ao cinema? Apetecia-me um balde daquelas pipocas….

publicado por Fernando Morais Gomes às 18:29

De:
Anónimo

Data:
5 de Março de 2013 às 21:09


subiste na vida à custa do trabalho gratuito dos outros... ó gomes. és um porco sem vergonha.
Anónimo a 10 de Fevereiro de 2020 às 23:47

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